segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Com ciência

- A alma, Pandora, é como essa caixa. Uma vez aberta, só as Moiras sabem a sorte e a garra dos demônios que saltarão sobre o seu pescoço... Mas qual a esperança para a aventura de uma alma aprisionada, não é mesmo?

Conto por Renato Kress

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Entre Gnomos e Ogros

Vê estes galhos retorcidos lá no alto da colina? Você já encontrou as pedras e restos de paredes e louças brancas que sobraram por ali, não é mesmo? Impossível esconder qualquer coisa de vocês nessa idade! Bem, acho que você já tem luas suficientes para que eu sacie sua curiosidade.

Dizem por aí que havia ali uma vasta torre de pedra, com três andares. A torre pertencia a uma senhora que muitos consideravam uma poderosa feiticeira. Na verdade ela talvez fosse apenas uma mãe solteira, sabe? Naquele tempo mães solteiras eram feiticeiras, claro! Afinal, quem poderia gerar vida sozinha, não é mesmo? Talvez a Virgem, mas isso cada vez mais é privilégio das histórias dos padres, claro.

Bem, essa senhora viva na torre com sua filha desde quando essa menina tinha memórias. A pequena, branca como louça e com seus cabelos negros e olhos de ébano, nunca havia conhecido seu pai. Se é que havia pai para ela. O fato é que ela nunca havia visto um homem.

A mãe ia, diariamente, às terras abaixo da colina plantar e colher, trazer barro para coser pequenas lajotas de louça branca com os quais ela estava recobrindo a torre de baixo àcima. Abaixo da torre e ao seu redor se estendia uma grande floresta. Nos limites dela havia um grande castelo, que a pouco tempo pasara a pertencer a um rei jovem e arrogante. Afinal, qual rei jovem não é arrogante? A questão é que, por alguma razão esse rei não invadia a floresta e nem permitia que seus homens o fizessem.

Um dia, ao acordar bem cedo, a jovem menina desceu correndo para ver o nascer do sol e a dança dos girassóis. Abrindo com pressa o portal e os trincos, ouviu um gemido baixinho de alguma criatura que agora corria movendo a relva. Seus olhos negros brilharam de curiosidade enquanto seus pés correram atrás do barulho. Mas ela não encontrou nada. Então sentou-se para ver o sol nascer.

Depois de alguns minutos sentiu um empurrão do chão. E outro mais forte. Então levantou com pressa e medo de haver sentado em uma cobra ou casa de toupeira! Qual não foi sua surpresa ao encontrar um ser como ela, uma pequena menina gorducha vestida com tiras de couro e com muitos fios pretos presos ao queixo? A menina pequena lhe explicou que não era uma menina, mas um gnomo e que vivia ali, nos buracos das cobras e toupeiras, trabalhando com as árvores. Quando as raízes das maiores árvores mergulhavam no fundo dos sulcos ele encontrava água para beber e, quando a terra secava ao redor das árvores mais velhas, ele encontrava minérios, ouro e até jóias brilhantes. 

Tirou do bolso um rubi e uma esmeralda e mostrou à menina. Ela, em troca, lhe mostrou uma fileira incrível de pérolas quadradas que estavam logo atrás de seus lábios. Ele gostou de ver as pérolas e, dali por diante, passou a sempre mostrar pequenos achados da terra para a sua nova amiga. Todas as manhãs ela saía, antes que sua mãe acordasse e se encontrava com o gnomo: Ele trazia quartzos e ficava arrepiado com as "pérolas" que ela mostrava. Um dia, com pressa, ele tropeçou e espalhou ágatas, ametistas e safiras pelo chão, então ele viu que ela mostrou as pérolas dela com ainda mais animação! Estranho que, nesse dia, quando o gnomo foi procurar as pedras espalhadas pela grama, só encontrou metade delas! "Bem, com certeza amanhã o sol vai brilhar bem forte logo cedo e aí eu vou encontrar as minhas pedras de novo!", pensou enquanto voltava para sua casinha embaixo da terra.

Algumas semanas se passaram e o gnomo percebeu, triste, que as pedras já não faziam a menina mostrar suas pérolas com tanta frequência. Além do quê, ele estava preocupado com alguma cobra que poderia estar roubando os quartzos, citrinos e granadas que ele às vezes deixava cair pelo chão. Depois de algum tempo a menina sequer olhava com atenção para ele e, outras vezes, os olhos dela brilhavam com uma luz estranha...

Um dia, quando o gnomo vinha à toda pelo gramado arrastando atrás de si um enorme saco com um rubi que fora do avô de seu avô, na esperança de ver de novo todas aquelas lindas pérolas que a menina havia mostrado no primeiro dia em que se encontraram, ela não estava lá. Ele teve de dar a volta ao redor da torre de louças brancas e seu coração se encheu de alegria ao começar a ouvir a voz dela! Cada vez mais alta! Mas, ao alcançar sua voz ele alcançou também uma pontada forte no peito. Ela estava mesmo ali, atrás da torre, e com ela havia um grande Ogro, do dobro do tamanho dela, com as mãos na cintura e ombros peludos. Ele mostrava também pérolas para ela e ela, esfregando os joelhos um no outro, arreganhava suas pérolas para ele. Do mesmo jeito como fizera pela primeira vez que havia visto o gnomo! 

O Ogro recebeu dela um grande saco de pedras, que ele abriu e jogou sobre as mãos, animado: Eram as pedras perdidas que o gnomo procurava a tempos! Pela primeira vez o gnomo sentiu chover nos olhos, mas quando olhou para o céu, não havia núvens, nem orvalho na grama, só nos seus olhos. Ele sentou na grama e escondeu o grande saco numa fresta entre as pedras da torre.

Dizem por aí que o saco nunca foi encontrado, que a menina casou com o Ogro. Dizem também que o Ogro acabou morrendo de um acidente na floresta e a menina - que já não era mais menina - foi morar com um Ogro ainda maior e mais rico. É o que dizem. Também dizem que o corpinho do gnomo secou ali, sentado, e virou uma pedra que ainda está lá. Uma pedra sem valor. Mas você sabe: dizem coisas demais por aí...

Conto por Renato Kress

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Odisséias

Sinceramente eu não sei. Não sei ao certo que tipo de demônio tragava todas as minhas esperanças para aquela curva na córnea do horizonte, onde outros loucos avistavam uma ilha. Lembro-me da história que minha mãe contava, de que ao atravessar o oceano comigo, meu pai acordou aflito, por duas noites seguidas, e me encontrou arranhando a parede do navio. Sempre na mesma direção. Um grande arranhado que acompanhava a curva que o comandante fazia. Talvez seja isso. Talvez eu sempre estivesse à procura dessa ilha.

O balanço das cordas roçando pelas minhas pernas e axilas me avisou que o barco se prendera nos recifes. Subi correndo as pedras, abandonando barco, razão e as vozes inebriantes da taverna na noite anterior. Era puro instinto. Pé ante pé diante de um matagal envolto em uma luz leste que vinha crescendo como um filete de sonho sob as silhuetas macias das árvores. Eu era as árvores.

Antes que o correr das águas de uma cachoeira me encontrasse a oeste eu sabia. Meu coração antecedeu pulsando o barulho da queda d´água, a clareira e o lago. Meus joelhos mergulharam na grama envergando aquela néctar cristalino para dentro da minha garganta. Sorri e pelas bordas dos lábios me escorriam filetes da mais ingênua felicidade. Aquilo que não se deveria negar a nenhum homem pode ser o maior dos tesouros quando tudo que se tem de si é o ser homem. Sem roupas, sem histórias, sem passados. Batizei-me entre as pedras e as curvas da queda. Eu era as águas.

O pensamento quis balbuciar qualquer coisa sobre escalar, mas o instinto fez coro com a intuição berrando estridentes que havia um caminho lateral. Contornei as pedras numa escalava suave, secando a felicidade no sol que seguia a minha subida, sorrindo comigo. É inexplicavelmente simples quando se começa a ouvir o murmúrio do teu íntimo. Ouvi a primeira vez em Budapeste, depois passou-se um longo silêncio até a França e agora aqui. Aqui ele grita, ele berra, ele urra na minha alma! Ele arrebenta as artérias e os sacos de ar no meu peito enquanto encontro as ruínas verde e brancas de um palácio que sempre fui eu.

Não enviem resgates. Não procurem meus ossos. Agradeço o carinho de todos os que se dedicaram de bom grado a me fazer ser o que esperavam de mim. Entendo seus sentimentos. Obrigado. Mas aquele não era eu. Eu sou a ilha.


Conto por Renato Kress

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Almas gêmeas

Enquanto isso, naquele site de relacionamento:

- Oi, gostei da foto. Você é enfermeira, médica?
- Não. Farmacêutica. Me chamo Indústria. "Farmacêutica" é só o titulo.
- Interessante. E você faz o quê? 
- Crio doenças, remédios com vários efeitos colaterais, pago congressos de fim de ano em resorts de luxo para os médicos que baterem minhas metas de vendas, essas coisas. E você? Esse "M.F." é de quê? Marco Feliciano?


- Não, que absurdo! Eu tenho escrúpulos! Quer dizer, um pouco mais... prazer, Financeiro, Mercado.


- Que imponente esse nome! E você faz o que? 


- Engraçado... tava aqui pensando. Acho que fazemos a mesma coisa. Onde você falou "doenças" eu falaria "crises", "remédios" eu já trocaria por "pacotes econômicos do FMI" e "médicos" por "correntistas da bolsa" ou "empresários de comunicações".


- Incrível, não é? E a gente acha que não vai encontrar ninguém nesses sites... você acredita em amor à primeira teclada?


- Eu só acredito em interesse, na verdade. E você?


- Agora eu acredito em amor...


por Renato Kress

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A ilha P´ong-lai

As pontas dos dedos eram puro hematoma pisado, cascas de calos amarelados e unhas cercadas de pequenas postas vinho escuro de sangue coagulado. Os músculos do punho, das costas e joelhos se retesavam juntos, enquanto ele vencia as últimas escarpas pedregosas que separavam o leito do rio cuja vazão já se tornara um murmúrio vencido depois de oitocentos metros de escalada. A névoa lacrimejava seus olhos e algo de ácido irritava suas narinas quando finalmente sua mão esquerda encontrou um ângulo reto entre a parede de rochas e o chão de gramíneas. Era ali.

Os primeiros passos, mórbidos, pesaram suas costas sobre seus joelhos cansados e quase o tragavam ao chão. A névoa ácida bruxuleava pelo caminho e qualquer coisa que estivesse a mais de três metros não era mais que uma espécie de contorno sutil ondulando em frente a uma nuvem de cegueira branca. Depois de vinte passos na direção do cheiro ácido que parecia ventar de algo imediatamente à sua frente, seus olhos viram pontos amarelos, luminosos, voando sobre a névoa. À medida que seus joelhos traziam os "vagalumes" até que se tornassem tochas, ao seu lado, ele pôde perceber a silhueta de uma casa de madeira ao mesmo tempo em que o vento lhe cortava um zunido estridente nas orelhas e passava por entre as frestas de lã do seu casaco irritando a área dos rins. As barras molhadas das calças começavam a ficar irritantemente frias no momento em que seu punho encontrou a porta, fazendo um barulho oco, mais baixo do que ele esperava.

Os olhos amendoados de uma menina de não mais de nove anos abriram a porta e o convidaram a entrar. Seus dedos ágeis indicaram que o sapato não entraria para além da soleira da porta e, enquanto ele descia as mãos para desamarrar o cadarço e o velcro da bota, a menina sumiu. Foram menos de três segundos para que ela voltasse com um balde de cerâmica negra e interior dourado, com uma infusão fumegante com um cheiro intenso de ervas e eucalipto. Aquela rapidez só era menos inquietante que o sorriso dela. Deixou o balde sobre o assoalho em frente a uma cadeira e novamente indicou, agora com o olhar, que ele fosse se sentar por ali, com os pés naquele refogado aromático.

A casa pareceu a ele muito maior por dentro que por fora, toda acarpetada nas paredes com tapeçarias que provavelmente pertenceram à bisavó da menina. Eram faisões, fênixes, grous coroados,  pavões, perdizes e outras aves que ele não conseguiu identificar numa profusão inebriante de cores e formas e qualidades variáveis de trançado. Tudo muito bem conservado e limpo, principalmente os fios de ouro que cintilavam por todas as tapeçarias. Ele perguntou à menina sobre sua avó e recebeu, como resposta, um pano quente que foi amarrado sobre sua testa e um chá quente, forte e amargo demais para ser tomado de primeira, ainda que ele tivesse muita sede. O chá veio na mesma cerâmica pintada de negro, com o mesmo interior dourado e luminoso.

Ele voltou a perguntar sobre a avó, a menina voltou a oferecer o chá. Com certeza não falavam a mesma língua, apesar de ele já estar naquela estranha ilha por dois longos anos essa era a segunda pessoa com quem se encontrava. A primeira era um demente alucinado, com certeza. Oito estações do ano em busca daquela casa, no alto daquelas pedras, e parece que a dona não estava. De qualquer forma a neta fazia o seu melhor e, com o calor nos pés, vinham os sons de grandes asas batendo ao seu redor. Ele procurou o som, mas a menina apontava intensamente para o chá.

A cada gole o som do bater das asas ficava mais nítido, as cores das tapeçarias pareciam se mover com as sombras das aves como se levantadas por algum vento e todo o amarelo das asas das aves parecia começar a escorrer em direção aos seus pés. Foi quando ele sentiu um frio pela espinha que desceu formigando seus órgãos internos. Uma vontade incontrolável de urinar fez com que ele fechasse os olhos enquanto tentava controlar a bexiga. A vontade passou como veio e seus olhos se arregalaram procurando pela menina, que parecia ter agora uns dezoito ou dezenove anos e deslizava os lábios numa espécie estranha de sorriso.

As mãos quentes da adolescente tocaram as mãos sensíveis, frias e laceradas da subida rochosa e ele viu as feridas se fechando, os coágulos diminuindo, os calos sumindo e a pele rejuvenescendo. Ele olha, assustado, para a linda mulher de trinta e poucos anos descendo os lábios sobre os seus. Ele fecha os olhos e sente seus lábios cicatrizarem das rachaduras do frio, sua língua ficando novamente úmida, seu estômago descolar as paredes e todo seu corpo sendo preenchido por uma sensação quase imaterial de saciedade física, íntima, erótica, intuitiva, espiritual. Seus braços são tomados por um arroubo de energia, seus músculos parecem leves e plenos de vigor.

Instantaneamente ele levanta. Levanta ainda beijando aquela boca doce que vai ficando cada vez mais leve, macia, seca e amarga. Seus braços se percebem tocando uma pele macilenta, murcha e arenosa. Seus olhos se abrem e num grito ele arremessa aquela carcaça idosa que substituíra a bela menina. Ele está em pânico, sua respiração oscila rápida, grave, pesada. Um vulto aparece por trás da cortina, a voz da velha diz coisas incompreensíveis colada ao carpete, segurando com quase nenhuma força ao pé de uma cadeira.

Ainda hesitante, suas costas se arqueiam para perto da cortina e ele puxa um pano frisado para encontrar apenas o reflexo de si mesmo, mas o reflexo de si aos dezesseis anos de idade, não mais aos seus costumeiros cinquenta! Ele sorri, tocando o próprio rosto, deixa que os dedos indicador e médio passeiem sobre seus próprios lábios, enquanto se aproxima de si mesmo arregalando os olhos para o reflexo no vidro, arreganhando os dentes num sorriso lascivo. Sua mente o leva às palavras no manuscrito mágico do alquimista Li Chao-kiun, onde ele recomenda ao imperador Wu, da dinastia Han:

"Sacrificai o corpo ao frio e ao forno (tsao), e podereis atrair seres (sobrenaturais); quando os tiveres feito aparecer, o pó de cinábrio poderá ser transmutado em ouro amarelo; quando o ouro amarelo tiver sido produzido, com ele podereis fabricar utensílios para comer e beber e então tereis uma longevidade prolongada. Quando a vossa longevidade for prolongada, poderei ver os bem aventurados (hsien) da ilha P´ong-lai, que fica no meio dos mares. Na maior escarpa sob o rio dessa ilha sacrificarás a ti mesmo perante a velha e já não morrereis." 

A última frase não parece fazer muito sentido, mas quem se importa? Ele era jovem de novo!! A velha, inútil, fraca e indefesa mal conseguia se erguer do chão! Que importa que por alguns instantes tivesse sido a mais bela das mulheres? Já não passava agora de um saco de pele e ossos sobre o assoalho! Não poderia fazer mais nada! Foi quando sentiu um calafrio nas suas costas. Um calafrio doloroso. A mão correu para a região do rim e voltou empapada em sangue. Ele ouvia o barulho de asas, enquanto as pernas fraquejavam e sua cabeça batia estilhaçando o vidro da janela. Virou-se desesperado procurando pela velha. Ela não estava mais no chão, tudo girava muito rápido, o sangue escorria quente e ele se arrastou para perto da porta ouvindo barulhos de asas. Sua visão embaçava, seus dedos ficavam leves e fracos, por alguns instantes pareceu ver o reflexo de seu rosto, aos oitenta anos de idade, no fundo dourado do balde onde colocara os pés. Olhou seus dedos, ensanguentados, envelhecidos. Gritou e abafou o próprio grito, desesperado, ao ver uma coruja enorme, negra, com o bico encharcado de sangue gotejante, pousar no delicado ombro da jovem menina que lhe abria novamente a porta.

Conto por Renato Kress 

domingo, 28 de julho de 2013

Filiações

- Já percebeu como acontece invertido?

- O que?

- A vida. Esperam que nasçamos filhos e morramos pais. Com sorte avôs. Mas eu tenho que te contar - e eu sei que não vai te surpreender num mundo onde tudo parece estar de cabeça para baixo - que isso não faz muito bem sentido. Na verdade só faz se for invertido. A gente cresce pai e envelhece filho. Cresce pai de idéias, projetos, ações e planos e envelhece filho dos nossos dias, atitudes, posturas e coragens. A gente envelhece e vai se tornando cada vez mais refém das nossas omissões e covardias ou apadrinhado pelos nossos projetos que criam asas embaixo das quais curtimos o inevitável peso do tempo. É preciso criar uma estrutura forte, alicerce robusto ainda que quase sem nenhum peso, afinal, dormiremos nosso mais longo sono abaixo das asas desses dias, talvez essa seja a maior arte da vida, sabe? A intenção daquela palavra enviesada, aquele beijo incerto, a taquicardia ofegante que prenunciou aquela tomada de atitude antes da entrega da sua alma a um novo caminho ou a um novo amor, aquela palavra amarga que terminou uma amizade, aquela distância estranha e intransponível criada entre os que um dia foram íntimos, tudo isso passa. Quando nos damos a esses pensamentos logo fugimos - a mente foge, é a natureza dela - para Shan-gri-lá, para o Éden, Eldorado, Atlântida, acabamos na armadilha aconchegante de idealizar a "toda poderosa" felicidade. Se a felicidade existe? Ela é como um soco na boca do estômago. Ela vem, preenche todo aquele instante, impede que você pense em qualquer outra coisa que não seja ela e depois? Ela passa. A vida é aquilo que passa. O cara que escreveu Don Quixote escreveu que "somos filhos de nossas próprias obras". Que tipo de obra você quer que te cuide na velhice? Precisamos estabelecer marcos, decisões que cavarão passos, tirando pequenas camadas de lama e terra do chão, húmus com os quais ergueremos o casebre ou o palácio de onde veremos que tipo de filhos nos tornamos, que espécie de pais merecemos. Se tivermos sorte cresceremos pais, gerando e criando e espalhando a palavra de nossas vocações, de nossos corações e almas por onde passarmos. Se tivermos sabedoria, até que a matéria de nossas mãos e pés e olhos e bocas se desfaça em átomos que em breve povoarão laranjas, sequóias e turbinas, morreremos filhos dignos dos dias que tivemos. Você acha que se parece com os dias que já teve?

Conto por Renato Kress

segunda-feira, 27 de maio de 2013

A última praia de Estêvão

Estêvão é funcionário público, gosta de ler e gosta de sol. Acordou antes de Ana, fez um pequeno lanche e saiu, naquele sábado, para a praia, no Leblon. Ele e seu livro do Chico Buarque. Alugou uma cadeira, sentou na beira da praia e leu. Chegou a perceber de relance uma sombra voadora sobre sua cabeça, mas não deu maior atenção. Seu compromisso, ali, antes de Ana chegar, era com as letras. Em dois segundos pulou na cadeira e soltou um sonoro "puta merda!" quando sentiu uma batida de asas desesperadas entre seus joelhos. O pombo ficara preso embaixo da sua cadeira e se debatia arrulhando desesperado.

Sua mão correu para arrancar a ave dali enquanto sua mente corria de volta para todos os estresses e desentendimentos da semana perguntando se nem na "merda" da praia ele teria um pingo de paz! Apertou uma massa de carne dura, musculosa e careca. Não parecia um pombo, mas fosse o que fosse estava bem seguro e ele iria arremessar para bem longe da sua bunda, da sua cadeira, do seu sábado! Sua primeira impressão foi a de que pegara um rato careca, mas não tinha rabo, tinha braços e pernas! Um pequeno homem, de uns vinte centímetros, careca, e estava mastigando metade do corpo do pombo.

Aquele homenzinho careca e nú olhou assustado para Estêvão e praguejou numa língua estranha, com os olhos arregalados. Seu braço esquerdo, preso, entre o dedo médio e o indicador, batia na mão de Estêvão para que soltasse. Entre curiosidade, medo e nojo, Estêvão enfiou homenzinho e resto de pombo no seu saco de pano junto com celular e livro e olhou ao redor. Era cedo ainda, poucas pessoas por ali e ninguém parecia ter visto aquela cena absurda.

O saco se debateu e caiu na areia e ele puxou a corda fechando antes que aquele homenzinho saísse. Depois olhou novamente ao redor e começou a se acalmar, respirou fundo e quis olhar de novo. Precisava reforçar a insanidade ou refazer a realidade, ali.

- Pirú, pirú, porra!
- O quê?
- Porra, caralho, porra, porra!
- Oi, calma! Eu... qual é o seu nome? O que é você? Larga o pombo!
- Nã, nã, meu, meu!

A voz era áspera e seca, como se arranhasse a garganta do homenzinho. Estêvão estava com aquele saco entre as pernas, vendo, lá dentro, aquele pequeno homem nú agachado triturando os ossos das asas do pombo com sua minúscula e firme mandíbula. Sua boca sem nenhum pelo estava encharcada de sangue e, às vezes, ele olhava para cima dando a nítida impressão de que não iria dividir seu café-da-manhã com aquele grande homem peludo.

- Eu não quero! Pode comer! Você... tem nome?
- Dááá, meu meu! - Disse o pequeno virando de costas para aquela grande cabeça no céu da bolsa.
- Já disse que não quero! Qual o seu nome?

E a mão de Estêvão entrou na mochila para apertar aquele ser estranho e careca. A mão precisava confirmar a vista. Dentro do saco o homenzinho se sacudia e tentava não sair, se agarrando no tecido e chutado o pulso e tentando morder aquela mão gigante...

Atrás e bem perto de Estêvão, com uma camisa do Vasco, estava João, instrutor de MMA, treinador de boxe, personal trainer e um cara tranquilo. Tranquilo quando não está com dois sobrinhos pequenos e a namorada, Mariana, sentados de frente para um cara que está, de costas, com a mão enfiada no meio das pernas, falando baixo e sacudindo os joelhos excitadamente no meio da praia!

João pede licença, levanta e vai até Estêvão, respirando fundo com os punhos cerrados.

- Amigo, que porra é essa?
- Hein? - Estêvão levanta os olhos assustado e fecha os joelhos sobre a mochila. Não conseguiria explicar por quê, mas estava completamente envergonhado, rosto vermelho, fala embargada.

- Eu, eu é...
- Mermão, o que é que você tava fazendo aí com a mão entre as pernas, seu animal? Tem criança aqui, infeliz!- e partiu pra cima de Estêvão enquanto falava. Este largou o saco se debatendo na areia e esticou as mãos para se explicar.

- Cara, vira essa mão pra lá! Porra! Cê tá maluco?
- Não, peraí, eu, é...
- Cara, olha só: eu tô com meus dois sobrinhos e a minha namorada aqui atrás e eu não vou ver você com a porra das mãos no meio das pernas se sacudindo na nossa frente! Entendeu? - Os olhos arregalados de João e sua orelha de brócolis diziam a Estêvão que era bom não argumentar muito naquele momento.
- É... tá... aham, desculpa então... eu...
- E não vem pra cima de mim, não, porra! Não explica nada! Fica aí e fica quieto, seu... doente!

Estêvão sentou com o coração a mil, boca aberta e mãos tremendo. O saco continuava se remexendo na sua frente e uma voz rouca saiu lá de dentro:

- Ná, ná... SEU DOENTE!

João já estava de costas. As costas de João voltaram para trás enquanto seu punho acertou em cheio a orelha de Estêvão, que caiu com cadeira e tudo, de lado, na praia quase deserta.

- Como é? Tá de sacanagem comigo, seu infeliz?
- Ná, ná... INFELIZ!
- Não, não, é... o saco! - implorou Estêvão, com os braços cobrindo o rosto, encolhido na areia.
- Quer no saco? Maravilha! Depois quer que eu te espanque onde mais? Pervertido filho da... o que é isso no saco? Tem um bicho no saco?

Estêvão ainda estava engatinhando desorientado e limpando a areia do rosto sem conseguir ouvir direito quando João avançou pra cima do saco.

- O que que tem aí, cara? Você tava passando o pau num gato, seu doente? É um pombo? Que porra é essa?
- É... eu...

O mais óbvio não passou pela cabeça de Estêvão. Na verdade alguma coisa nas entranhas dele estavam reviradas ali, e não era (só) o soco, nem a areia, mas uma estranha vergonha daquele ser pelado se revirando e grunhindo no seu saco. Ele não tinha como explicar. Isso para Estêvão era o maior crime, mais doloroso que o peso da mão de João era a imagem daquele homenzinho nú e careca falando palavrão e babado de sangue dentro do saco. O saco era dele... como explicar?

- Tô falando com você! É o quê? Me dá esse saco aqui!
Puxaram ao mesmo tempo o saco, que voou para perto da água. A confusão estava atraindo pessoas e um guarda municipal se aproximou com o cacetete na mão. Estêvão ajoelhado, João chamando o guarda, o saco perto da água, pessoas se avolumando, crianças indo pegar o saco...

- Tem um gnomo pelado no saco! Pronto! É isso! Me bate se quiser, cara, mas tem um gnomo lá! Pega o saco, olha! Ele... ele comeu um pombo e eu tirei ele debaixo da minha bunda! Pronto! Olha lá, pegaram o saco, vê lá dentro! Vê!

A resposta foi tão desesperada e absurda que as pessoas começaram a rir enquanto duas crianças traziam o saco para o guarda que o abriu de cabeça para baixo, deixando cair um celular, um livro e um lápis, e só.

Desde então Estêvão só pode ser encontrado na piscina do Flamengo, e com Ana.

Conto e receita por Renato Kress

terça-feira, 9 de abril de 2013

Uma noite entre os Ainos

Naquela noite a lua subiu lenta, deixando um rastro de negrume como um vapor quente que nos abraçava as carnes. Eram dois extremos geográficos, o limite norte da ilha mais ao leste do mundo. Abocanhava-me a visão do Pacífico e uma pequena mão, peluda, me puxava pelo braço instantes antes de que os deuses do sono me tragassem para trás. Era Pé-nú. Dei-lhe esse nome porque de todos seus parentes ele era o único cujo pé não tinha pelos. De resto era como todos os outros: baixo, membros socados e rijos e de pelagem espessa, com olhos rasgados de forma que alguns eu sequer reconheceria se dormiam ou não.

Pé-nú me puxou para a floresta ao norte de Kamakuri, repetia, a intervalos de três a cinco minutos, os mesmos sons que eu escreveria como "Kamui Omante" ou algo assim. Entramos no negro da floresta, sem tochas, sem luzes. Antes que meus olhos se acostumassem às trevas verdes tive de fazer das mãos olhos e tateava no vácuo, escorregando e batendo a cabeça muitas vezes. Numa delas Pé-nú disse a mim a mesma palavra que usava quando se dirigia às crianças: "Korom" (esse era o som). Me senti ridículo. Tinha e tenho ao menos uma década a mais de vida que esse pequeno aborígene do oriente.

Meus dedos sentiam o áspero frio de uma parede de rochas. Estávamos entrando em uma caverna. Percebi que meus olhos haviam se acostumado ao pouco de luz quando olhei para trás e vi a silhueta de outros dois amigos de Pé-nú chegando para nos acompanhar. À frente já não enxergava mais nada. Apenas o frio das rochas úmidas do orvalho. Meu coração tropeçava intenso a cada novo passo, a cada escorregadela, e minha respiração procurava imitar a respiração tranquila e ritmada dos meus acompanhantes. Algum tempo e senti que conspirávamos, respirávamos juntos ali no útero da noite. Isso me acalmou.

O sopro quente veio intenso, trepidando meu coração e concentração. Era uma nuvem, uma nuvem negra de dentes e garras e estava a menos de centímetros de nossas mãos e naquele íntimo espaço de concentração arrombei meu peito com o terror e então uma torrente de pés e joelhos e lascas de pedras e topos de caverna que se batiam com força na minha testa me trouxe de volta a luz agora perfeitamente visível da lua entre as folhagens. E todos subiram nas árvores, e Pé-Nú me empurrou para cima por duas vezes antes de descobrir que seria mais simples subir e me oferecer a mão. Havíamos ido para além de tudo o que é proibido e encararíamos, agora, o ódio do senhor das trevas. Era possível ouvir seu grunhido, seus berros e as rochas que se mexiam enquanto ele saía à nossa procura, à procura dos que haviam invadido seu território.

Pé-nú se pôs em pé, sobre o galho em que estava e, numa posição altiva, mergulhou seus olhos em mim e bateu no peito por duas vezes. Coisa que até então eu só havia visto os guerreiros daquela tribo fazer. Acho que ele queria me dizer que agora era um guerreiro, ou estava prestes a se tornar um. Ele me forçou a levantar e fazer o mesmo, mas minhas pernas fraquejaram, meu coração rasgava meu peito e minha respiração estava me fazendo ver cores à borda dos meus olhos, o que era impossível, àquela hora da noite.

Acordei perto de uma chama, amarrado a uma árvore na periferia de um grande buraco no chão. Sobre esse buraco estava uma grade, uma grade decorada com pedras e panos coloridos, um desses panos ficava no fundo da grade e era de um vinho vivo. Minha curiosidade ferveu quando o pano se moveu lentamente uma, outra e então outra vez. Olhei com atenção por entre as grades e pedras e panos e vi uma forma triangular e uma forma redonda. A forma triangular se movia mais rapidamente e a redonda seguia, vezes sim, vezes não, mas sempre mais lenta. O que poderia ser aquilo?

Com metade do meu corpo sobre a grade vi um focinho saindo da ponta da forma triangular. Poderia dizer que nos "vimos" simultaneamente, porque aquele focinho acelerou para a borda do buraco com uma velocidade inacreditável na minha direção, com presas brancas enormes, deixando o cobertor vinho para trás e revelando a presença gigantesca de um urso negro.

Devo ter desmaiado de novo. Senti uma dor avassaladora na minha mão esquerda e, ao olhar, vi faixas cobrindo a ausência de um dos dedos, o anelar. À época pensei que eles haviam dado meu dedo ao urso, depois percebi que não foi exatamente isso. Acabou sendo mais fácil conviver com a falta do dedo do que  explicar à minha Lia o sumiço do anel.

Fomos aleitados e cobertos com panos limpos. Eu e o urso. Tomávamos sucos adoçados, preparados especiais, comíamos o que havia de melhor. Depois da terceira noite meu receio de que eles cortariam outra parte do meu corpo foi se desvanecendo. Estava claro que o urso havia arrancado aquele dedo e eu havia desmaiado. A cada dia me convencia de que o urso se irritou ou fascinou com o brilho do anel ou simplesmente eu havia colocado a mão para a frente esquecendo que havia, entre suas presas e garras e eu, uma grade que me protegeria se eu desse um salto para trás. Engordei nesse meio tempo. Bastante.

Aos poucos comecei a compreender a lingua dos familiares de Pé-nú. O urso era uma divindade da montanha e uma espécie de "espírito da lua". Comecei a pensar que aquilo fazia sentido porque o urso desaparece no inverno, quando a lua está mais longe daquelas ilhas no horizonte, e reapareceria na primavera, quando o urso termina de hibernar. O pouco que eu compreendesse ali teria de ser o suficiente ou entendi errado. O fato é que o urso era o espírito ordenador ou divisor. Dividia os quatro momentos do dia, as estações do ano, os elementos. Percebi a relação dele com os elementos quando um xamã desceu, embriagou o animal e fez pequenos experimentos com sopros, pedras, água, madeira, ferro e fogo. A cada um ele respondeu de uma forma, e o xamã pareceu às vezes preocupado e às vezes contente.

Um dia trouxeram uma corda bem grossa. Amarrada em forca. Estavam muito tristes, mas resolutos. Parecia uma tristeza ritual, fingida. Tiraram a grade, embriagaram o animal, ofereceram um banho ritual ao urso que demorou-se em cantos e pétalas de flores. O animal, embriagado, foi amarrado à forca e içado usando-se, para isso, a árvore em que eu estava amarrado. Foi um espetáculo terrível. A dor do peso monumental do animal sendo tensionado pelo seu pescoço parecia trazer rapidamente a consciência de volta, mas não foi o suficiente. Em poucos minutos a energia vigorosa de seus músculos relaxou, para sempre. Todo esse espetáculo me enojou, as comidas que deram ao animal também foram oferecidas, como sempre, a mim, e minha glote já estava se preparando para devolver tudo diretamente ao buraco de onde meu companheiro de cela havia sido dolorosamente içado. Foi quando, num arroubo de sanidade, vi Pé-nú com a mesma expressão ritual de tristeza, caminhando em minha direção, com os braços baixos. Na sua mão direita, uma corda.

O zunido ensurdecedor de mais de trinta arcos simultaneamente vazando o ar ao meu redor jogou meus olhos para o grande urso negro, agora crivado de flechas. Voltei para Pé-nú, de olhar resoluto a menos de três passos de mim. Me levantei. Coloquei os pés na largura dos ombros, virados para frente, estufei o peito, arregalei ao máximo meus olhos, peguei minha coxa com a mão esquerda e, jogando o cotovelo direito para fora do corpo, bati com a mão direita fechada no meu peito, por duas vezes. Foi o que vi Pé-nú fazer no galho, foi o que me veio à mente. Foi o que me salvou a vida.

Antes que eu fosse embora eles me presentearam com um dente do urso. O mesmo tipo de dente que eles colocavam, afetuosamente, sobre os berços das crianças, como as patas e garras que colocaram sobre as portas das casas, rezando em minha despedida, para que a força vital do urso pudesse retornar dando a eles mais força e astúcia, para que o "espírito do velho", do "avô da floresta", retornasse para conviver com eles e os alimentar de força e sabedoria. Para que ele não praticasse a possessão, mas se prestasse a ser parte da magia e da vida daquele povo.

Ao ir embora tentei explicar para Pé-nú que seu povo estava morrendo, que era preciso ir a novas ilhas, que o progresso estava chegando e os destruiria. Afinal, que suas crenças não faziam o menor sentido! Ao que ele me respondeu algo como: "Estamos morrendo sim, você tem razão. O avô do avô do meu avô costumava caçar sete ursos por vez e esse ano só tivemos um. Então nosso povo está fraco. Quando tivermos mais ursos então. Aí talvez o seu povo fuja de nós."

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 25 de março de 2013

A máquina

- Então é assim que tudo funciona por aqui, Fernanda.
- ..."tudo?" como assim "tudo"? Eu acabei de chegar, não sei sequer o seu nome... Espera aí, que lugar é esse?
- Prazer, Deus. Esse é o lugar onde fabricamos as mentiras. Todas elas. E é preciso não perder tempo. Eu expliquei tudo. Não me interprete mal, mas é isso. Você não estudava ouvindo gravações de aulas enquanto dormia? Te expliquei com você deitada ali, você ouviu. Confia, tá tudo no inconsci...
- Para tudo!
- Não dá. Isso assim não tem como "parar", minha filha. Agora fica aqui com Deus que ele vai...
- Espera! Você me disse que era Deus!
- E sou!
- E agora está apresentando esse outro aí. Ele nem parece Deus!
- E eu pareço?
- Bem, mais que ele, sim!
- Olha - com licença Deus, já te chamo de volta - vamos do começo: você morreu e então estamos aqui. Deus então me pediu para te explicar como funciona esse setor e você dormiu no meio da explicação. Tudo bem, acontece quando a gente chega, ficamos meio moles mesmo. Mas não podemos parar, sabe? Essas mentiras não se criam sozinhas! Você tem que afrouxar os parafusos delas todas, senão duram demais!
- Isso aí é uma mentira?
- É. Como tudo mais aqui.
- Mas se você é Deus...
- Eu e Ele ali e aquele cara lá no alto também...
- E eu?
- Olha, na verdade você também, mas isso vem com o tempo, não precisa se apressar...
- Mas porque temos que ficar aqui fabricando mentiras?
- Na verdade estamos afrouxando verdades...
- ...que seja. Mas por que isso, com que propósito?
- Lembra do Ernani?
- Meu marido.
- Ex-marido. Você morreu, Fernanda.
- Sim, o que tem ele?
- Você amou ele todos os seus dias?
- Claro! Levamos uns 30 anos para nos encontrar e nunca mais estive com nenhum outro homem depois!
- Nunca?
- Claro que não!
- E o Samuel?
- Que Samuel, você está louco? O Samuel foi um namorado de faculdade, isso não faz o menor sentido!
- Nunca transou com o Ernani pensando no Samuel?
- Que mente podre a sua, hein "Deus"!
- Você vai querer mentir para mim?
- ...tá, e daí? Pensei no Samuel sim! Duas ou três vezes!
- Quatrocentas e oito...
- Como assim?
- Fabricamos aqui, sabe? Tá vendo aquele ponto verde saindo daquele tubo azul piscina?
- A-hã.
- É um "Gustavo", mas só na casca, o miolo é "Antônio".
- E por quê se fabricam mentiras no Céu?
- Pensa nos impostos que você pagava, lembra do IPVA? Eu te peço IPVA e você lembra dos buracos na rua. Lembra  nas vezes que a Paulinha e o Felipe te atrasavam para o trabalho brigando ou quando você queria dormir até mais tarde e dizia "tá tudo bem"? Então. Vê aquela cachoeira de bolinhas ali?
- Uau! Que incrível! Como pode algo tão grande? O que é?
- A saída do tudo do "tá tudo bem", é uma das nossas maiores refinarias!
- Tem maior que essa?
- Claro! Várias! Algumas piorando a situação, outras melhorando, depende mesmo do interesse de quem precisa. Aí nós vamos lá e criamos, por isso você está aqui.
- Eu vou criar mais mentiras?
- Sim, temos uma demanda inesgotável! Quando estamos lá do outro lado estamos mergulhados nelas, quando estamos aqui estamos criando elas. É assim que funciona! Você lembra das aulas de física no colégio, de ótica? Sei que lembra. Lembra do fenômeno da "refração total" quando o ângulo da luz incidindo sobre a água vai aumentando até que toda a luz é refletida de volta e não entra mais na água? Então, é isso! "Lá do outro lado" somos peixes! A gente não suporta o ar! Muito ar nos mataria! Pense onde você estaria sem todos esse "tá tudo bem", "eu te amo", "nada não", "sem problema", "eu me lembro sim" e "eu não me importo"...
- Então você está aqui para enganar todo mundo?
- Eu e você! E isso é um trabalho de amor! Onde você estaria sem todas essas engrenagens? Tá vendo aquele "vai ficar tudo bem"? É do Ernani... pra Paulinha...

Conto e Receita: Renato Kress

terça-feira, 19 de março de 2013

Anais das imperatrizes da água

"...
A água, meu Senhor, flui do mais alto para o mais baixo, levando consigo tudo o que não tiver boa estrutura, toda forma solta que esteja insone, despregada de raiz e sem a devida atenção. A água se move em ondas, em filetes e em rios, como a seiva vermelha nas tuas veias, como o sangue verde esbranquiçado dos troncos. Um veio d´água irradia filetes de vida para dentro da terra onde o solo breve proliferará sua pelugem verde onde o Senhor descansará seus cabelos. A água traduz movimento em vida e é necessário honrar o que ela traz, Senhor.


Honrar os presentes da água é honrar aquilo que chega e te acelera as águas internas, aquilo que te flui intenso e ondeia forte nas praias do coração. A água, Senhor, fará de palavras pétalas e de pétalas sílabas e de sílabas contratos e então será preciso honrar os contratos, nutrir a quem te nutre.

Haverá imperatrizes das águas, todas fluidas e lânguidas e lívidas e a corrente que verter elas até você terá de ser alimentada. Há de encontrar-se a nascente desses rios não para controlá-la, mas para preservá-la..."

 - Pedaço do manuscrito tropeçado nos meus pés por uma onda, em um sonho.


Conto por Renato Kress

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Tributo aos fracassos anunciados



- Fico me perguntando, com esses teus olhos curiosos, quando você vai começar a falar. Ou se além do que você vê, ainda vai me obrigar a começar essa conversa. Conversas aliviam, garoto. Não importa muito a ocasião, conversas aliviam. Será que você está aqui por isso?

E o homem, amarrado num mastro, a trezentos metros da praia, sobre uma balsa de madeira, sorri alucinadamente como se lembrasse de uma velha piada e cospe um dente que cai quicando no chão e fica preso numa fenda.

- Ahhh!!! Sabe a quantos dias estou empurrando esse dente com a língua, garoto? Esse mesmo aí que você virou a cara quando quicou na madeira. Vai saber quando você estará virando as costas para a vitória de alguém, não é mesmo? Isso aí preso na madeira é uma vitória, moleque! Toda vez que tiramos um obstáculo, por mínimo e imbecil que possa parecer, menino. Olha bem! Esse brilho branco é minha vitória! É provável que seja a minha última, então porque vou esquecer de honrar? Quem vai me impedir de valorizar esse maldito obstáculo cuspido para o quinto dos infernos, a satisfação do gosto do meu sangue enquanto a minha língua passeia por esse último buraco?

Jogou a cabeça para trás com força para tirar a franja de cima do olho esquerdo e bateu oco no mastro. Os olhos se fecharam com pressão e dor. Via fagulhas e pontos negros na periferia do olhar. Encarou o rapaz, sentado num bote, olhando para ele, fixamente.

- Sabe por que isso é uma vitória? Olhando os cacos? Já te explico eles também. Você vai entender o sangue e o dente. Se você veio atrás de uma boa história é bom que tenha boa memória também. Me irrita que as pessoas façam o que eu faço: colocar detalhes e florear os acontecimentos do que realmente se passou. Vamos combinar que o que eu invento é o suficiente? Talvez você aprenda algo com o que vai ouvir, então um brinde!

Olhou atentamente a cidade e o amanhecer, por alguns segundos.

- Eu quero propor um brinde, me olhe nos olhos! Isso. Um tributo a todos os meus fracassos anunciados! Brindaremos aqui, você e eu, um velho pirata e um garoto sem nome. Beberemos o suor que escorre aqui das nossas testas e de nossos rostos. A esse sol que está nascendo! A esse sol vulgar de todos os povos, que não tem a menor dimensão nem consciência de que é o meu último sol. A esse sol que não se importa. A esse sol, a esse sal, a esse mar.

- Um tributo à minha burrice! A como ela começou a carcomer minha vida, quando eu tinha uns dez anos a mais que você deve ter agora. Um brinde a quando fiquei famoso por duas ou três besteiras na cidade e isso chamou a atenção de certas pessoas. Não me lembro bem de tudo, mas uma delas foi ter achado um pedaço de papel molhado no chão, a caminho de uma taverna. Queria usar ele para fazer um desenho para Margueritte, uma linda paixão de bordel. Sem sorrisos! Quando a gente fala "paixão" seguido de "bordel" se entende que a coisa toda funcionava embaixo do umbigo, garoto. O papel era bem trabalhado, fino, e eu fui secado ele usando uma vela. Tava numa mesa de canto, sozinho. Quase ninguém viu as manchas escuras que viraram letras ali. Era uma mensagem para alguém importante. Entreguei a mensagem e isso me deu crédito perante as pessoas certas. Queria dinheiro fácil e o que me pagaram foi com confiança e com ela em alguns dias recebi um emprego diferente. A coisa toda era continuar sendo o tal "rapaz de confiança". Um brinde ao "rapaz de confiança", então! Ouvi tanto isso que por um tempo achei que fosse meu nome. Em alguns dias já sabia fazer parte da tripulação de alguns navios certos, em semanas conhecer pessoas certas, em meses interceptar certos documentos e, em menos de um ano aprendi a afundar uma navalha em alguns pescoços. Guarda que um dia isso te será útil: Pescoços são bons,  dão certeza.

Parou por alguns instantes, jogando o olhar para o perto de sua orelha direita, como se lembrasse algum som em especial ou ouvisse uma voz invisível.

- Seu olhar não me é estranho, garoto. Não me é estranho.

De repente o homem pressionou bem a boca e gritou:

- Um tributo! - Chegou a gota de sal aqui! - A todos os meus fracassos anunciados! Aos pequenos e aos gigantescos suicídios diários! Um brinde a cada paixão de taverna, a cada aperto de mão que me levava para outras praias, países, continentes, a cada milha percorrida e aos pequenos sucessos que não fizeram mais do que esticar minha esperança para que minha vida pudesse comportar mais e maiores fracassos no futuro! Um brinde às aventuras, aos documentos que perdi tentando salvar meu traseiro de balas e lâminas, em especial uma última gota amarga de sal por essa missão última, razão de terem me deixado aqui para morrer, preso nesse mastro, sobre uma balsa ancorada esperando a maré subir. Ninguém se importaria em passar uma corda no meu pescoço e entregar as sobras a uma cova, mas é preciso dar o exemplo aos próximos eus que virão e eu sempre fui um "homem de confiança", então aqui estou, a vista de todos na cidade. Um "homem de confiança", morrendo como um "homem exemplar". Se algum dia tive filhos seria engraçado lhes dizer isso na cara. Vim em busca do segredo que por aqui não é segredo, mas de onde vim é. O segredo de se colorir o vidro. Vocês aqui tem o conhecimento que algumas pessoas acharam que valia uma viagem de três anos e um espião "de confiança", o mesmo conhecimento que algumas pessoas por aqui decidiram que era importante demais para que eu levasse comigo! Um novo brinde! Agora é o bigode que me traz esse suor salgado! Um brinde à filha do vidraceiro, aos olhares noturnos dela, a como ela soube me seduzir e usar. Um brinde a como ela não era sequer bonita, meu Deus! Um brinde aos meus fracassos anunciados, a como ela me contou os segredos das cores dos vidros, enquanto me drogava, e a como ela me fez mastigar mais de vinte cores de cacos enquanto terminava de me amarrar, com o pai, aqui.

Conto e receita: Renato Kress

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Aquele beijo

Foi numa festa. Na verdade no fim de uma festa. Éramos amigos, e ele sempre contava muitas histórias. Fomos para longe das luzes e das vozes. Ele sentou do meu lado, olhou meus olhos e apontou as estrelas. Era sempre assim que começavam as histórias. Pelo menos as dele. À medida que os dedos dele passeavam de constelação em constelação eu ouvia um solo intenso de piano que tocava na minha alma (ou longe? na festa?) enquanto meus olhos, bem abertos, projetavam meu corpo em vôos alucinantes por entre as árvores para depois se perder naquelas estrelas. Era assim que começavam as histórias dele. Era assim que eu me preparava para ouvir.

- "Fecha os olhos e solta a voz no mundo. O corpo retorna pra lá quando tem de retornar. Não antes. Você foge muito, menina. Sabe? Alguns heróis, quando morrem, viram estrela. Talvez alguns de nós, depois de muitas mortes, morremos estrela, mas nunca antes. Para viver - não é respirar e andar ou atrasar nosso enterro enterrando cada dia numa massa cinza inferior à gente mesmo, digo para viver vivido, para tocar a alma do mundo com o caminho dos pés - aí é preciso vários momentos de bem morrer. Mas olha, por favor, não morra antes de morrer."

Ele tocou minha cabeça duas vezes, com força, e sorriu.

- "A gente se engana muito, sabia? Aqui você desaprende. Aí que a coisa toda desanda. Um pouco de tempo e as teias traçadas aí em cima viram a raiz dos piores cogumelos. Você ri? Eles implodem! Com o tempo isso vira um campo minado e aí te convence a parar de acreditar. Primeiro em uma pessoa, depois várias, logo muitas e, por fim, você desacredita de você. É desacreditando que você deixa de morrer e, enfim, morre. Parece que não, mas vai que tem algum sentido, escuta. Quando você desacredita bem desacreditado mesmo no presente ou no futuro é que você não deixa o passado morrer direito, aí, com um pouco mais de tempo, a sua semente morre semente e nunca flor nem fruto. Isso aí, se dominar, vai querer te dar certeza e chão e terra. Mas olha o mundo. Acha que o mundo precisa de mais terra e pedra? E se precisar, não vai ser de você. Você é o que você está se tornando, sempre. Vida vem com a terra, mas é mais que isso, é vento e água e fogo e nunca só um. É, eu bebi... Com o tempo, com um pouco de mente e tempo, você desacreditará no controle do teu pensamento, a palavra que te sai não vai dar medo no mundo para criar o novo, e aí, quando tua palavra perder a magia, quando a voz da sua voz morrer antes do som, a mão vai perder deus e o ato vai brotar mecânico, óbvio, sem dança. E é preciso dançar o futuro, sabe? Como num salão bem cheio, tipo aquele que a gente evita, lá atrás. No salão, na dança, você prevê o movimento, o que você quer do movimento, mas aí tem o salão e os outros dançando e as luzes e a bebida escorrida no chão e a batida do momento. É a batida que dá o ritmo, e a coisa toda é feita de ritmos, sempre. E aí em cima não bate."

Ao longe a gente ouvia "Walk on the wild side". Ele tocou meu peito e colocou a boca no meu ouvido.

- "Bate aqui."

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A banheira de Agamêmnon

A televisão, alta, podia ser ouvida de dentro do banheiro onde ela tomava uma longa e morna ducha. Queria que seu coração desacelerasse, mas mesmo por baixo da água quente e que descia pelas suas costas e cabelo, as pupilas pareciam latejar, as mãos tremiam e uma sensação deliciosa de poder e potência parecia dançar sobre a superfície da pele de Luzia. Os sons ainda ecoavam pela sua cabeça, todos eles.

A televisão não parava: "Um dos mais violentos crimes já presenciados na cidade! Desfigurado e decapitado, por uma pá de pedreiro, o corpo e a cabeça do senhor Manoel Constant foram encontrados em duas lixeiras diferentes na saída dos fundos de uma boate..."

A cabeça de Luzia escorregava pela banheira, mergulhando suas costas trêmulas e nuca sob as águas mornas, na esperança de controlar a respiração curta e acelerada, ritmada pelo coração e as pupilas dilatadas. Ainda submersa sentia o som e a vibração do ferro e a textura da madeira sobre seus dedos leves e gelados. Os sons ecoavam pela sua cabeça. A cada vez que emergia a cabeça daquele lodaçal e frenesi de si mesma, abria bem olhos e ouvidos. Pedia para ouvir mais que a televisão, queria ouvir alguém na porta, arrombando, esmurrando, apontando armas e dedos para ela.

Mas era só a repórter, com mais detalhes. Todos inúteis: "Na pá ajuntadeira quadrada número quatro da marca momfort não foram encontradas impressões digitais, apenas as marcas do sangue da vítima que espirrou na parede e no chão do beco na entrada lateral da cozinha da boate. Ao que parece não houve nenhuma testemunha e a música deve ter abafado os possíveis sons..." Agora era só manter o drama e mostrar novas imagens por trinta minutos para alavancar o ibope e vender horário comercial.

Luzia olhou para a tampa da privada, as duas luvas de couro e látex estavam ali, como se sorrindo. Ela ainda não conseguia parar de tremer. Mesmo sentada na banheira não conseguia firmar os pés e achava que ia desmaiar. Girou a torneira enquanto a chuveirada se tornava um filete de água delgado que ela deixou escorrer pelo meio dos seus cabelos até a testa, descendo pelo nariz para ter seu mergulho interrompido pela língua de Luzia, que num bote, tragou aquele último vestígio de sentimento. Seus olhos arregalaram para imediatamente cerrar, enquanto suas pupilas voltavam ao normal. Um último calafrio percorreu seus ombros e desceu pela sua espinha até seus pés, que imediatamente pararam de tremer. Ela se vestiu, se perfumou e esperou. As luvas não sorririam para sempre. Eles chegariam a qualquer momento.

A televisão nunca disse que "Manoel" Constant, a "pobre vítima de um ataque de fúria assassina, que deformou a lateral esquerda de sua face e o decapitou a golpes de uma pá ajuntadeira quadrada número quatro", o "pai de família e sóbrio homem de negócios haitiano", o "gentil pai e amigo" pelas palavras de seus vizinhos entrevistados, era um refugiado. Menos ainda mencionaram ser ele um tipo específico de refugiado. Alocado no "Queens" com ajuda do governo norte-americano, Mr.Constant degustava sua merecida aposentadoria como chefe da força paramilitar haitiana FRAPH através da qual ele foi responsável direta e indiretamente pelo assassinato de quatro ou cinco mil haitianos, no início da década de 1990. Dois desses haitianos ainda sorriam, em preto e branco e sépia, com os rostos colados num emaranhado de 3x4, na carteira de Luzia.

Receita e conto: Renato Kress

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