segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Fundações

Quando viu - na gota do orvalho sobre a rosa matinal - o reflexo de um castelo atrás de sua nuca - ele não ficou desapontado por saber que não havia castelo atrás - ele sorriu porque soube onde ficariam as fundações. Era um homem comum, quatro membros, uma cabeça e ombros que suportavam não mais que o peso de suas estranhas certezas. Era um homem comum. O estranho nele, eram as certezas. 

A maior parte das pessoas ao redor, ele pensava, tinham muitas dúvidas sobre o próprio futuro, sobre a vida, sobre as formas de amar e ser amado, sobre a destinação dos impostos e as razões certas das guerras. Ele compartilhava dessas dúvidas também, é claro, era um homem comum. O que lhe acontecia de singular era o brotamento estranho de redes neurais no seu cérebro, um tropismo qualquer que lhe subia, nadando na glia, em direção ao que ele chamava de "vontade". Dessa tal "vontade" é que surgiam, numa espécie de insondável via láctea cerebral, as suas estranhas certezas.

Ele não sabia exatamente como, mas também não questionava, o fato é que não sabia como mas via o mundo inteiro como um enorme ajuntamento caótico de pirâmides e lápides. Ele olhava para seu prédio e claramente via aquelas paredes como obras das mãos de homens que possivelmente estariam mortos àquela hora, seu carro era de um ano atrás, mas a ideia de um motor a combustão utilizando combustível fóssil com bancos e rodas e portas era uma criação de um homem, ou de um grupo de homens, que com certeza já estavam mortos. O sistema democrático, as oligarquias, os casamentos, o pão francês, a carta de amor e o cadarço para amarrar os sapatos, tudo aquilo para ele cheirava a morte, porque eram trabalhos e criações de quem agora alimentava os vermes sob a terra.

É claro que a primeira vez que esse homem comum teve essa certeza um sentimento de vazio e prostração lhe invadiu. Ele ficou desalentado porque nada era "natural", o mundo inteiro, desde o sabonete até comer sentado eram invenções e ele não lembrava de ter tomado parte em nenhuma delas. Ele só aceitava e convivia. Conversando com amigos ficou sabendo do tal niilismo - dessa coisa de não acreditar em nada - e isso deixou ele prostrado no sofá por uns dias, pensando que não costurou nenhuma das suas roupas, que não saberia montar uma bicicleta caso fosse preciso, e que aquilo tudo ao redor lhe lembrava um grande cemitério de idéias.

Foi quando ele teve a primeira. Sinceramente ele não lembrava mais, hoje em dia, qual foi a primeira, mas na verdade não importava, porque ela era de uma natureza virótica, a primeira gerou a segunda, quase que por partenogênese a terceira levou à sétima e então ele não parou mais. Eram muitas, eram longas, grandes, pequenas, inusitadas, leves, densas, intermitentes, contínuas, eternas, eram várias e várias formas de ver aquilo tudo de um novo jeito, de uma nova forma. Como milhares de óculos em forma de borboleta a lhe pousarem sobre o nariz e mudar a imagem do mundo. E os cemitérios foram virando parques de diversões onde ele se perguntava sempre: "Por que não?", "E se fosse diferente?", "E se não fosse obrigatório pensar assim, como seria?".

Isso não mudou as dúvidas antigas. Ele continuava com elas. Ele não sabia ainda sobre o futuro, sobre a vida e sobre o amor, ele não tinha a menor ideia da destinação dos impostos, mas para alguns assuntos ele poderia criar algumas respostas, para outros ele poderia disseminar melhores perguntas. Por isso mesmo, quando ele viu na gota do orvalho sobre a rosa, o reflexo de um castelo que não estava na sua nuca ele não ficou desapontado por saber que não havia castelo atrás, ele sorriu, porque soube onde ficariam as fundações.

Renato Kress

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