quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Tributo aos fracassos anunciados



- Fico me perguntando, com esses teus olhos curiosos, quando você vai começar a falar. Ou se além do que você vê, ainda vai me obrigar a começar essa conversa. Conversas aliviam, garoto. Não importa muito a ocasião, conversas aliviam. Será que você está aqui por isso?

E o homem, amarrado num mastro, a trezentos metros da praia, sobre uma balsa de madeira, sorri alucinadamente como se lembrasse de uma velha piada e cospe um dente que cai quicando no chão e fica preso numa fenda.

- Ahhh!!! Sabe a quantos dias estou empurrando esse dente com a língua, garoto? Esse mesmo aí que você virou a cara quando quicou na madeira. Vai saber quando você estará virando as costas para a vitória de alguém, não é mesmo? Isso aí preso na madeira é uma vitória, moleque! Toda vez que tiramos um obstáculo, por mínimo e imbecil que possa parecer, menino. Olha bem! Esse brilho branco é minha vitória! É provável que seja a minha última, então porque vou esquecer de honrar? Quem vai me impedir de valorizar esse maldito obstáculo cuspido para o quinto dos infernos, a satisfação do gosto do meu sangue enquanto a minha língua passeia por esse último buraco?

Jogou a cabeça para trás com força para tirar a franja de cima do olho esquerdo e bateu oco no mastro. Os olhos se fecharam com pressão e dor. Via fagulhas e pontos negros na periferia do olhar. Encarou o rapaz, sentado num bote, olhando para ele, fixamente.

- Sabe por que isso é uma vitória? Olhando os cacos? Já te explico eles também. Você vai entender o sangue e o dente. Se você veio atrás de uma boa história é bom que tenha boa memória também. Me irrita que as pessoas façam o que eu faço: colocar detalhes e florear os acontecimentos do que realmente se passou. Vamos combinar que o que eu invento é o suficiente? Talvez você aprenda algo com o que vai ouvir, então um brinde!

Olhou atentamente a cidade e o amanhecer, por alguns segundos.

- Eu quero propor um brinde, me olhe nos olhos! Isso. Um tributo a todos os meus fracassos anunciados! Brindaremos aqui, você e eu, um velho pirata e um garoto sem nome. Beberemos o suor que escorre aqui das nossas testas e de nossos rostos. A esse sol que está nascendo! A esse sol vulgar de todos os povos, que não tem a menor dimensão nem consciência de que é o meu último sol. A esse sol que não se importa. A esse sol, a esse sal, a esse mar.

- Um tributo à minha burrice! A como ela começou a carcomer minha vida, quando eu tinha uns dez anos a mais que você deve ter agora. Um brinde a quando fiquei famoso por duas ou três besteiras na cidade e isso chamou a atenção de certas pessoas. Não me lembro bem de tudo, mas uma delas foi ter achado um pedaço de papel molhado no chão, a caminho de uma taverna. Queria usar ele para fazer um desenho para Margueritte, uma linda paixão de bordel. Sem sorrisos! Quando a gente fala "paixão" seguido de "bordel" se entende que a coisa toda funcionava embaixo do umbigo, garoto. O papel era bem trabalhado, fino, e eu fui secado ele usando uma vela. Tava numa mesa de canto, sozinho. Quase ninguém viu as manchas escuras que viraram letras ali. Era uma mensagem para alguém importante. Entreguei a mensagem e isso me deu crédito perante as pessoas certas. Queria dinheiro fácil e o que me pagaram foi com confiança e com ela em alguns dias recebi um emprego diferente. A coisa toda era continuar sendo o tal "rapaz de confiança". Um brinde ao "rapaz de confiança", então! Ouvi tanto isso que por um tempo achei que fosse meu nome. Em alguns dias já sabia fazer parte da tripulação de alguns navios certos, em semanas conhecer pessoas certas, em meses interceptar certos documentos e, em menos de um ano aprendi a afundar uma navalha em alguns pescoços. Guarda que um dia isso te será útil: Pescoços são bons,  dão certeza.

Parou por alguns instantes, jogando o olhar para o perto de sua orelha direita, como se lembrasse algum som em especial ou ouvisse uma voz invisível.

- Seu olhar não me é estranho, garoto. Não me é estranho.

De repente o homem pressionou bem a boca e gritou:

- Um tributo! - Chegou a gota de sal aqui! - A todos os meus fracassos anunciados! Aos pequenos e aos gigantescos suicídios diários! Um brinde a cada paixão de taverna, a cada aperto de mão que me levava para outras praias, países, continentes, a cada milha percorrida e aos pequenos sucessos que não fizeram mais do que esticar minha esperança para que minha vida pudesse comportar mais e maiores fracassos no futuro! Um brinde às aventuras, aos documentos que perdi tentando salvar meu traseiro de balas e lâminas, em especial uma última gota amarga de sal por essa missão última, razão de terem me deixado aqui para morrer, preso nesse mastro, sobre uma balsa ancorada esperando a maré subir. Ninguém se importaria em passar uma corda no meu pescoço e entregar as sobras a uma cova, mas é preciso dar o exemplo aos próximos eus que virão e eu sempre fui um "homem de confiança", então aqui estou, a vista de todos na cidade. Um "homem de confiança", morrendo como um "homem exemplar". Se algum dia tive filhos seria engraçado lhes dizer isso na cara. Vim em busca do segredo que por aqui não é segredo, mas de onde vim é. O segredo de se colorir o vidro. Vocês aqui tem o conhecimento que algumas pessoas acharam que valia uma viagem de três anos e um espião "de confiança", o mesmo conhecimento que algumas pessoas por aqui decidiram que era importante demais para que eu levasse comigo! Um novo brinde! Agora é o bigode que me traz esse suor salgado! Um brinde à filha do vidraceiro, aos olhares noturnos dela, a como ela soube me seduzir e usar. Um brinde a como ela não era sequer bonita, meu Deus! Um brinde aos meus fracassos anunciados, a como ela me contou os segredos das cores dos vidros, enquanto me drogava, e a como ela me fez mastigar mais de vinte cores de cacos enquanto terminava de me amarrar, com o pai, aqui.

Conto e receita: Renato Kress

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