quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Retribuição

Fora a alma de Lucius, todos diziam. A alma de Lucius estava com fome e tragou pelas narinas da carne de Herculano sua alma às sombras do rio dos mortos. Contemos a história do começo. Lucius contraíra matrimônio com Josephina, era primavera do ano de nosso Senhor de 1673 e ela era só sorrisos embalsamada nos bons desejos de todos para com o jovem casal. Dizia-se mesmo que ele recebera de herança uma pequena arca com tesouros de família.

Infelizmente quis o destino que Lucius nunca se recobrasse ao certo de uma gripe que lhe enfraqueceu os pulmões e debilitou as carnes. Faleceu aos 28 anos, deixando a jovem Josephina sob os cuidados de um primo, Herculano. Um estranho vendaval na cidade havia arrancado do quintal dos fundos a cruz de madeira que ela havia deposto em memória do falecido marido. Diz-se que o vendaval ocorreu na noite primeira em que Herculano mudara-se em definitivo para a casa da prima. O fato é que ninguém mais aproximava-se da jovem viúva sequer para um leve aceno de cabeça. A pequena e dócil Josephina tinha agora como sombra os largos ombros e a espessa sobrancelha de Herculano.

Era algo sofrível toda a situação e fermentava um incômodo geral na população. Desses incômodos que geram histórias que se avolumam de boca em boca, como uma pasta de palavras ruminadas que se adensavam nas mentes ativas do povoado. Fato era que nas mentes do povo era agora Josephina amante do primo que talvez houvesse mesmo envenenado as carnes do pobre Lucius no início de tudo. Era o que por lá corria, mas corria como vento matinal que insufla as folhas para em breve pousar-lhes ao chão. Nada grave, mas contínuo.

Isso assim foi-se até o dia em que Bernardo, pároco da pequena igreja do povoado, ouviu à meia noite estranhos barulhos à esquerda do pátio externo. Imaginou galhos quebrados que se batiam contra a terra e as lápides sob o efeito do vento, mas os barulhos não cessavam, eram contínuos, com cadência. Tudo aquilo a mente supersticiosa do pároco ignorou, até o ponto em que tosses fortes, intensas e um grito cortaram a madrugada. Seus joelhos aceleraram até o som, circundando as paredes altas e encontraram Herculano, caído, com a boca no chão, em espasmos. A cova de Lucius aberta.

Com todo conhecimento médico do pároco não houve boa sorte e, após alguns leves novos espasmos e uma forte gofada de um líquido esponjoso, os olhos de Herculano revivraram-se a caminho do fim. O pároco, talvez pelo choque nos nervos diante de toda a situação, sofreu ainda por alguns dias e teve de ser levado a outra cidade. Haveria novo pároco em breve.

 Tudo isso se sabe mesmo porque foi em cercanias de grande cidade, de onde veio o novo pároco, que se dizia especialista nessas sortes de maldição. Um certo doutor Victor, polonês, passou por lá à chegada do novo pároco e frustrou-se em rodear-se de curiosos num bar da cidade e explicar, sob forte efeito de rum, que as carnes humanas se decompõem em gases sob a pressão do ar dentro dos caixões, gases venenosos para os pulmões dos vivos. Não era suficiente, na mente aldeã, para explicar uma chave que fora encontrada nas mãos de Herculano, a mesma chave que um menino dissera ver no pescoço de Josephina, no dia em que partira daquele lugar maldito.

Conto por: Renato Kress

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