segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Vinho, sexo, chocolate

Foi uma tarde maravilhosa de sábado. Acordaram às onze, tomaram um café forte, começaram a ligar para a irmã dele. Precisavam saber a hora e como chegar ao tal japonês no centro da cidade, perto da praça XV. Ele não esperava a noite de fim que teve. Ela não esperava a noite da verdade que teve.

O japonês foi maravilhoso, sorrisos, comentários engraçados, fotos, muitos abraços e afagos. Ela recebia os mil beijos que ele sempre dava, nas bochechas, na boca, na ponta do nariz. Ele sempre foi carinho. Ela sempre retribuiu à altura. Ela olhos verdazuis como ele dizia. Ele olhos brilhando para os dela, sempre. Casal perfeito, companhia perfeita, tarde perfeita.

A tarde ela dormia estirada sobre a cama de um amigo dele. Também sobre a cama ele e o amigo inauguravam o novo playstation três. Ela não reclamou um segundo, dormiu profundamente. Acenos e abraços depois, foram a um bar, comer uma salada e um crepe. Antes do meio da salada ela perguntou o que havia de errado. Ele desconversou, fez carinho sobre as bochechas dela, comentou sobre os lindos olhos verdazuis. Duas garfadas depois ela reincidiu, cravando o olhar nos dele. Não havia fuga ali, e ele sabia, o azul virou marinho e o verde musgo, o cenho dela enegreceu como se nuvens cobrissem o céu azul nublando a atmosfera sobre aqueles olhos. Ele disse: Estou apaixonado.

Ela mordeu os lábios, pequenos lábios rosados, lindos, e disse: Quem é ela?
Ele largou o garfo: Você não conhece.
As pequenas mãos dela pressionaram o guardanapo que deveria ser ali o substituto do coração apertado dela. Os olhos se fecharam por alguns segundos infinitos: Quando foi isso?
Ele fugiu o olhar, relaxou os ombros: Antes de nos conhecermos.
Ela olhou fixamente para ele, olhos negros: Vocês tiveram alguma coisa?
Ele encarou como pôde, num misto de coragem e pena: Nunca.

Ela se foi.

Na mesma noite ele ligou para outra menina, caso antigo, disse: traga vinho... tenho... chocolates.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Duplo

Seria bom poder ser objetiva. Ter foco, uma visão recortada e centrada da realidade. Perceber um pouco de nitidez num universo que me parece tão mutável quanto turvo. Gosto quando recorto a realidade porque me parece que exerço uma leitura específica sobre o mundo, minha leitura. É um exercício de poder, nunca neguei. Talvez por isso mesmo eu tenha decidido ser fotógrafa.

Quando falamos pelo telefone, eu e ela, algo ímpar transformou aquela quinta-feira. Algo no tom despreocupado ou no sotaque carregado daquela menina francesa me inspirou uma oitava acima da vida cotidiana. Fiquei inquieta e apressada, algo na atmosfera simplesmente mudou e não saber exatamente o quê realmente me inquietou. Demais.

Da minha experiência desse trabalho, só o que posso te dizer é que foi a coisa mais bizarra que já presenciei. A garota é francesa e meu pai nunca esteve na frança, então, a princípio, risco zero. Claro que a mãe dela poderia ter vindo para o Brasil, mas... risco zero, por favor! Devo estar ficando louca! Além do mais ela tem idade pra ser minha filha e ela é literalmente a minha fuça! Fosse só isso, ótimo, mas todos os presentes se impressionaram: a postura, o jeito de falar, de andar, a aparência... Ouvi comentários suficientes da equipe e não quis dizer nada mais, mas ela tinha o jeito de vestir de quando eu tinha a idade dela!

A sensação que tive foi a de me ver no espelho vinte anos mais jovem mas com o olhar vinte anos mais treinado que tenho hoje. Muito estranha a sensação. Enquanto não coloquei a mão nela, não me convenci de que não era um holograma! Viagem no tempo total, só que estando presente, por trás da lente!

Conversamos sim, mas como ela não viveu o que eu vivi até aqui, creio que não tenha tido o mesmo impacto, embora tenha flagrado o olhar dela meio perdido em mim algumas vezes. Talvez alguma projeção, não sei. Muito, extremamente estranho. O jeito de falar é igual, não a entonação, não tenho sotaque, mas as pausas, o movimento dos olhos e a brincadeira com os lábios, ela morde quando não tem certeza do que vai dizer. Sei que faço isso. Mas definitivamente é outra experiência de vida. Os assuntos, as abordagens, a profundidade, isso tudo é diferente de quando eu tinha a idade dela. Eu era mais nervosa com a vida, mais insatisfeita, mais afoita, menos tranquila do que ela. Eu tinha a incerteza de um caminho, o que me pareceu que ela não tem.

É. Talvez você tenha razão e ela esteja carregada dessa certeza juvenil que o Renato Russo fala, mas não sinto que seja só isso. Ela me pareceu mais pacífica, mais serena, até mais velha, no olhar. Isso me assustou mais do que tudo. Suei a ponto de reclamar do calor dentro do estúdio com ar ligado e tremi de frio quando fotografamos ao ar livre. Eram trinta e oito graus no termômetro da rua.

Sim. Definitivamente sim. Era inevitável que ela percebesse nossa sinonímia. Não reagiu com nenhuma surpresa ao nos encontrarmos, mas com certa curiosidade, sim. Nem melhor, nem pior. Parecia me analisar, mas não entrei por essa senda. Para mim foi o me ver e não me reconhecer em fração de segundos.

Uma coisa engraçada é que eu colo no modelo o tempo todo. Se vai ao banheiro vou atrás, se sai, saio também e assim vai. Uma hora, na make, eu a fotografava pelo espelho e tive a nítida sensação de auto-retrato!

Uma das fotos que tirei dela foi sobre a murada da Urca, com um vestido vermelho, cabeça entre os joelhos, olhando o mar. Tenho muitas fotos minhas em casa, muitas, óbvio. Impossível lembrar todas. Essa, da mureta da Urca, vestido vermelho, cabeça entre os joelhos, exatamente essa, minha mãe me colocou nas mãos assim que cheguei em casa, havia caído e trincado o vidro.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Menires

Então ele veio e sentou-se sob a luz da fogueira. Completou a formação ao redor e olhou fixamente a todos os presentes, da esquerda à direita, fechando o círculo com um aceno de cabeça e um sorriso enigmático. Agora ele sabia, era um deles. 

Treze luas
Desde treze luas atrás Lilkt'tak estava em preparação. Com mais oito jovens de seu clã, Lilkt'tak comia e bebia diariamente comidas separadas, ouvia a tambores rituais, dançava ao nascer do sol e fazia preces da época do avô de seu avô às estrelas antes de dormir. A cada sol um novo parágrafo era incluído às preces, a cada sol um novo mistério se revelava a seus ouvidos atentos, à memória coletiva daquele pequeno grupo. Se todos os dias batalhas eram travadas entre seus nove membros, todas as tardes suas testas se colavam em círculo prometendo fidelidade e companheirismo, honra à grande deusa mãe e seu consorte. Honra à terra, honra ao gado, honra aos chifres e aos ventres do clã. Em troca seus sentidos eram aguçados, suas habilidades melhoravam dia a dia e os ferimentos sofridos já não eram mais sentidos, sua carne se tornara forte, como seu espírito.

Sete luas
Sete luas atrás Lilkt'tak foi surpreendido em seu sono por Gion'ktat, pai de Tript'nak, dominado pelo espírito do urso. Estava sob o manto branco de Awntrat'ki, o grande urso morto pelo Guerreiro-deus ancestral, o fundador. Acordado com força com um chute Lilkt'tak pôs-se de pé o mais rápido que pôde somente para agachar em posição de combate e mostrar os dentes e as palmas das mãos para o outro guerreiro. Toda a cena parecia preenchida por um silêncio assassino. O máximo que ouvidos atentos perceberiam seria as folhas secas sob os pés dos dois guerreiros. O combate ritual teve início e não foi sem dificuldade que nosso herói, já com as têmporas ensanguentadas, executou o pulo que o fundador teria dado por sobre o grande urso, cravando seus dedos ágeis sobre as órbitas oculares da pele que recobria Gion'ktat e arrancando-a por trás do velho guerreiro. Foi quando este último pareceu sair do transe e ajoelhar-se perante o rapaz atônito. Disse-lhe que retornaria na próxima lua.

Seis luas
Na sexta lua Gion'ktat acordou Lilkt'tak com estocadas de um bastão em frente à casa cerimonial onde os rapazes dormiam. Agachou e desenhou, à sua frente, um mapa na terra. Então correu. O jovem levantou ávido por seguir o velho guerreiro mata adentro até a pedreira. Enquanto corria percebia vultos ao seu redor, por entre as árvores, também correndo. Passaram-se quatro quilômetros até que ele pôde perceber uma clareira, após um declive anguloso. Nessa clareira estavam tochas, muitas tochas que ladeavam a entrada de uma caverna. Estancando sua corrida em frente a esse cenário os ouvidos de Lilkt'tak surpreenderam-se ao percebê-lo cercado pelas negras sombras cuja presença ele já adivinhara. Todos seus colegas, todos seus irmãos. Colocaram-se em roda e levantaram suas mãos direitas sobre o peito de seu vizinho, fazendo um círculo fechado onde executaram a respiração ritual inspirando e expirando o mais forte e rápido que pudessem. Então seus espíritos eram os mesmos, sua alma apenas uma. Nesse momento entraram, um atrás do outro, no ventre da grande deusa, a caverna de pedras sob o declive.

Quatro luas
As juntas do ombro direito de Lilkt'tak pareciam querer rasgar como folhas secas, seus joelhos doíam como se fossem ser esmagados, a palma de sua mão esquerda era aberta lentamente pela corda trançada que circundava o Menir levado por aqueles nove rapazes a se tornarem homens. Era imprescindível que ele só tocasse o chão no espaço santificado pelas nove meninas a eles prometidas e que então fosse enterrado com seu cume em direção aos céus, de onde viriam os espíritos dos antigos ter com eles. Foi um dia duro. O grande herói foi Tript'nak, que caminhou por vinte metros com o pé vazado por uma pedra afiada. O eixo entre eles, a Mãe e o Pai foi colocado sobre o espaço sagrado. À noite, sem poder sair de dentro da sua casa comunitária, ouviram finalmente as vozes de suas prometidas, seus hinos em honra de sua glória, o canto sobre seus amores futuros. Para Lilkt'tak essa foi a melhor das noites. Acredita mesmo que talvez tenha sonhado com a Grande Dama branca...

Uma lua
A uma lua Lilkt'tak prostrou-se sob o Menir e esperou. Esperou por uma tarde inteira pela alma do Grande Deus ou da Grande Deusa, que pousaria sobre o Menir e lhe traria o presságio, indicando que as provas haviam terminado. Por três sóis ele esperou e antes que aquela lua houvesse fugido, numa noite silenciosa um piado oco ouviu-se sobre o Menir. Era a Grande Deusa, na forma de uma coruja negra, a olhá-lo atentamente. Os lábios de Lilkt'tak abriram-se e águas nasceram entre suas orelhas. Ao finalmente poder circular a pedra, encontrou Kilk'nan, sua esposa.

Conto e Receita: Renato Kress

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