segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Vida Láctea

"Mas quando estamos sozinhos e é noite e a escuridão e o silêncio são tão densos que não escutamos e não vemos nada a não ser os pensamentos que somam e subtraem os anos, e a longa série daqueles fatos desagradáveis que impedosamente nos mostram até onde os ponteiros do relógio já chegaram, e a aproximação lenta e irresistível do muro de trevas que finalmente tragarão tudo o que eu amo, desejo, possuo, espero e procuro, então toda a nossa sabedoria se vida se esgueirará para um esconderijo impossível de descobrir, e o medo envolverá o insone como um cobertor sufocante." - C.G.Jung, A Alma e a Morte

Querida Bruna,
te escrevo essa carta como quem perde um filho. A esperança é sempre algo cujo próprio nascimento engloba uma dor inenarrável, porque é um trabalho contra a natureza, depois de tanto tempo ainda esperar algo, ainda crer. Crença é algo que, com o tempo, aprendemos ser o verdadeiro motor do mundo. Para além do fantasioso "amor", quando realmente olhamos as engrenagens da vida, as duras e arenosas engrenagens do cotidiano, percebemos que mais que o idílio pueril de um poeta inglês, quem realmente move todo esse teatro de atos, insistências e aparências não é o surreal e platinado cupido, mas a dura e sutil imagem da crença. Você viveu teus anos e se tornou o que é porque acreditou que poderia sê-lo, não por amor ou ódio a essa imagem de si mesma.

O tempo passa. É ridículo da tua parte se preocupar com isso, acredite. Não serás nunca mais jovem do que és agora, então relaxe e siga. Não pense que me agrada parar minhas atividades para te escrever isso. É realmente um incômodo ter de sentar à beira dessa janela para lidar com esse aparelho dos infernos, sequer gostei quando criaram a tal "máquina de escrever", mas agora já não posso confiar em nenhuma instituição, muito menos os correios, então prefiro lidar com esse pequenino demônio de luzes e ter ao menos a possibilidade de ter uma cópia do que lhe escrevo. Quero te dizer que tens negligenciado teu silêncio e isso é burrice. Quando negligenciamos demais qualquer parte de nossa vida ela tende a explodir em outro lugar, como uma supernova vira um buraco negro, provavelmente.

Talvez morar em uma cidade como a tua tenha te feito ficar assim. Não sei. Creio que deva estar se perguntando como sei de tudo isso e como percebo daqui a hiperatividade da tua mente. Ora, vivemos numa família de mulheres, palavras são ar em propulsão e as glotes reverberam como pássaros canoros por aqui também, minha cara. Tua mãe anda radiante das tuas mil atividades. Tua avó fantasia tudo maravilhoso, futuros gloriosos, prêmios, vantagens, salários. Eu? Eu devo ser o velho rabugento, o crítico, o indesejável purgante familiar cuja morte provavelmente agora parecerá um desamarrar dos nós que entravam o fluxo da vida. Mas essa é a tua imagem de agora e eu não a culpo se jogar essa carta de lado e presentear o vento com um palavrão. Sei que às vezes sou irritante contigo e com Clara, a diferença é que, com a idade, percebo a importância de ser como sou. Todo sistema precisa de um contrapeso, minha cara. Nessa familia irritante de otimistas convictos, restou a mim ser a segunda viga. 

Pergunto-me se, em meio a um mestrado, um emprego, uma pós, um curso de idioma, uma aula de pintura, uma aula de dança e um namoro é sensato viajar para onde seja para fazer o que for. Talvez eu esteja louco mas aqui como aí a rotação da terra só permite que vivamos vinte e quatro horas diárias, dentre as quais é necessário satisfazer as necessidades do corpo. Duvido que consiga ter para todas essas atividades mais do que dezesseis a dezoito horas diárias. Claro que todas essas coisas são possíveis, cada uma a seu tempo. Parabenizo tua disciplina por consegui-las, sem dúvida, mas é possível, nesse turbilhão insano de atividades, ter teu tempo? Está correndo em direção a algo ou fugindo do que corre dentro de você? E se for o segundo caso, do que está fugindo, menina? É sensata e necessária essa fuga? 

Desculpe teu velho avô a lhe perturbar a consciência com essas idiotices, mas não vejo você tendo tempo a perceber a si mesma, de forma que me cabe esse irritante trabalhinho familiar. Como disse, escrever essa carta não me é prazeroso, gostaria de estar passeando com Aramis no quintal, levá-lo para evacuar no jardim da senhora histérica que grita ao telefone é bem mais divertido que te educar para a vida via "word" e impressora. 

Simplesmente não pude deixar de observar que boa parte da tua juventude está sendo desperdiçada por falta de cuidado consigo mesma. Se a toda manhã estudas, se em todas as tardes trabalha e se a todas as noites tens atividades "educativas" e aulas e cursos e festas e saídas e conversas, quando te sobra tempo para organizar a si mesma? Você tem levado a vida ou ela tem te levado? Quem está no leme do navio, menina? Quantos anos está com esse rapaz, o Estévão? Desculpe-me ou não, mas tenho que dizer que aqui em casa, no natal, vocês tinham o mesmo fogo da paixão que eu tenho pelo Aramis. Aliás não me surpreenderia se na hora de ir embora você mandasse ele sentar, rolar, deitar, e o rapaz obedecesse abanando o rabo! Tive a nítida impressão de que antes de ele se aproximar com o rabo entre as pernas para me cumprimentar você disse a ele "dá a patinha pro vô, amor".

Já que não pareces ter tempo de refletir por si mesma, embora inteligência te sobre, talvez essas linhas possam te ajudar a superar esse claro receio com que se joga à vida. Tens receio de si mesma. Não tenha, é idiota. Não precisa disso. Não estou planejando morrer por enquanto e, dependendo do teu grau de maturidade no momento, você vai achar isso ótimo ou péssimo. A forma como lida com teus problemas é problema seu, você sequer tem obrigação de ler isso até o final, mas enquanto eu estiver aqui vou te presentear com um pouquinho de incerteza e irritação, pra dar ignição em processos novos na tua vida, porque você ainda tem tempo disso. No final acho que estava errado no começo, quando escrevi porque a esperança morreu, escrevo porque dói quere-la ver nascer de novo. Mas só para que me odeie um pouco mais te digo: se eu posso errar e admitir, o que me diz de você?

Sou mesmo irritante, não?
Te amo, eu acho.
Vovô.


Conto e receita: Renato Kress

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Elenco de apoio

- Essas noites sem lua me perturbam.
A frase cortou o ar pesado do verão como uma katana divide em dois um bambu entre aqueles trinta e poucos centímetros que separavam, na varanda da festa de Rodrigo, Eleonora e Jânio. Os olhos dele percorreram os céus negros como se fosse possível, ao encontrar a lua, pedir aos lábios dela um sorriso como resgate. Nada.

- Dizem que a lua tem algo com sentimentos. O que você acha?
A segunda frase dela veio ainda com os olhos perdidos no infinito constelado, sem mover os olhos ou qualquer parte do corpo em qualquer direção. Os pulmões de Jânio estavam num impasse: o ar entrava prenunciando a sílaba que deveria sair e se retardava submersa em meias palavras que não se completavam e embaralhavam na língua inquieta e morta. Ela era linda demais...

- Linda...
- Como?
- Awn... 
- Você disse "linda".
Os olhos dele fugiram dos dela e procuraram em qualquer estrela a palavra certa, a idéia certa. Cerrou os punhos pesadamente somente para rezar para si mesmo que ela não tivesse percebido que sua nuca estava suando. A palavra, a idéia...
- Linda, a noite está linda mesmo sem lua. Não acha?

Os quadris de Eleonora quedaram-se para a beirada da varanda e levaram seus olhos negros a se perder novamente no véu da abóbada celeste. Se ele estivesse frente a frente com ela poderia jurar que um sorriso resignado lhe serpenteou os lábios antes da boca se abrir.
- Uma noite sem lua é como uma lista telefônica.
- Como é?
- Uma lista telefônica, sabe? Muitos personagens, nenhum protagonista.

- Entendo. E é preciso que haja um protagonista? Para a noite?
Seus ombros relaxaram quase trezentos quilos cada um por haver acreditado que finalmente ele estava acertando as palavras, essa espécie de leprechauns brincalhões que sempre lhe desapareciam quando mais precisava. Palavras em fuga eram constantes em Jânio, assim como a apreensão que o invadia nessas situações. Algumas vezes sentia como se estivesse efetivamente esmagando o próprio crânio em busca do termo certo, o que fazia com que raramente ele saísse no tempo certo, mas isso já é outra questão.

- A vida deve ter um protagonista, não?
- Cada qual o seu, creio que sim, mas...
- Então a noite também deve ter seu protagonista.
Ele queria pedir a ela que brilhasse no lugar da lua, que simplesmente sorrisse e estaria feita a luz necessária para iluminar a noite dele. Tudo isso parecia igualmente lindo como brega para Jânio, que sentiu repentinamente sua boca se avolumar como um tsunami de leprechauns brincalhões, impedindo as palavras de se formarem e virem à luz.

Jânio pigarreou bem alto, como se quisesse que todos aqueles malditos anões bucais entendessem quem é que mandava ali. Pigarreou de novo - o que soou meio estranho e seco, mas já era tarde para consertar e inspirou profundamente antes de partir para o tudo ou nada:
- Está com calor?
- Sim, mas...
- O sol cansa. O calor cansa. O excesso da presença do sol, essa presença que se esgueira em vapor quente subindo do asfalto até altas horas da noite, cansam. Minha pele está quente, a tua também deve estar. Estou na varanda esperando uma brisa que não acontece, ou quando acontece vem quente. O protagonismo excessivo cansa. O sol anda muito expansivo ultimamente. Talvez por isso a lua tenha se retraído. Vai saber.

Eleonora sorriu e sua cintura torneou-se levemente para a esquerda, lado onde a pulsação de Jânio provocava um terremoto arterial e fazia suas mãos começarem a suar. As esferas negras por trás das pálpebras dela desceram até a portaria do prédio, enquanto seu umbigo formava um ângulo de cento e oitenta graus com o umbigo de Jânio...
- Vamos descer para procurar a lua?

Conto e receita: Renato Kress

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Cidade Proibida

"No man is an Island,
entire of itself;
every man is a piece of
the continent, a part of the main”
- John Donne


Era uma cor que se plasmava na mente dele. Ali, na casa de tintas, ele olhava a cor que queria para a sua parede. E era novo ter uma parede, como era novo ter um teto e chão. Ele estava ali, absorto, ampliando como um longo mural uma por uma das cores que apareciam na paleta entre seus dedos. Seus ouvidos ignoravam a moda da cor tal ou qual que saía em cachoeira de palavras da boca tensa do vendedor. Na sua mente mil paredes se expandiam e estampavam em verde limão, vinho oriental, laranja cítrico, azul petróleo. Cada uma era um espectro de humores sob os quais ele passaria muitos anos de sua vida, e era importante que essas cores significassem para ele. Como escolher uma cor para toda a vida? Como escolher um humor para toda a vida?

Quando mais novo pensava sobre as vantagens da temperatura do sangue. Um sangue frio impunha maior autocontrole, vingança, palavras monotônicas, volumes cadenciados, afetos controlados por um relógio de corda, sangue quente vazava pelos atos, esbarrava pelas mesas, tropeçava garras pelos pescoços alheios, ampliava o espectro vocal, inflava o peito. Cada qual representava um caráter que era necessário escolher para representar até ser, pelo resto dos dias. E agora, sangue escolhido, que ritmo cardíaco queria naquela parede?

A sala era um quarto de um conjugado dividido pelo sofá-cama de costas para a janela. Um conjugado com duas paredes contíguas. Um lado era recheado de portas embutidas de armários, uma das quais era a porta do banheiro, o outro era simplesmente a parede. Os outros lados paralelos do quadrado eram a janela e a porta da casa que dividia espaço com a cozinha americana e a entrada para uma área de serviço. Claramente só havia uma parede e ele estava decidido a não tê-la branca ou verde hospital (não havia boas lembranças de hospitais). Foi o que o levou à casa de tintas e agora o levava ao vermelho "cidade proibida", inspirado nas cores da famosa cidadela chinesa.

Aquela parede o acompanhou pelos três anos em que morou naquele primeiro conjugado. Alguns meses foram o suficiente para que ele comprasse um adesivo de parede marfim com o símbolo chinês da longa vida e colocasse bem ao centro, dividindo o semi-quarto da semi-sala. Ele nunca percebeu claramente - colocava a culpa no tempo, na hora, nas circunstâncias -, mas a proibição da cidadela chinesa lançou-lhe um feitiço peculiar: visitava todos os amigos, era comum em festas e churrascos, foi a inúmeros cinemas e motéis, mas nunca recebeu visita.

No fim do terceiro ano voltou à casa de tintas. Recebera um novo cargo na empresa com o qual pagou a primeira prestação do seu novo apartamento, agora com uma nova parede entre o quarto e a sala. Aquela parede areia, que ficou com uma marca do café que derrubaram no open-house. Nenhuma parede foi para sempre.

Conto e receita: Renato Kress

domingo, 9 de janeiro de 2011

Fadas

E seus ombros encontraram a cama, e os cotovelos empurraram dedos que se entremearam sob o travesseiro desaparecendo sob o mini útero macio entre a fronha e a cabeça, e ele já era completamente outro. Ele era uma massa indiferenciada de saudades e desejos, ele era ela e era ele e era também as cores frágeis daquele dia que fugia enquanto ele se perguntava se já havia se sentido assim antes. Aquela noite ele havia transcendido toda a possibilidade de sanidade, mordia os lábios e inspirava profundamente, tanto que seu tórax parecia se rasgar por dentro. Queria ainda resgatar o cheiro do cheiro dela por entre as roupas de cama, suas coxas ainda procuravam a tez da nudez dela enquanto as horas, pequenas deusas do destino, lhe volitavam ao redor da face. Ele sabia disso porque quando criança seu irmão lhe havia dito que se pressionasse bem forte as pálpebras antes de dormir veria alguns chapiscados luminosos na borda dos olhos e eles eram as horas. Algumas culturas chamam de fadas, porque elas regiam o fatum, o destino humano. Eram a divisão, a ponte e o selo entre este mundo e o outro. Ele já havia, visto, à noite, uma delas viajar disfarçada sob o peito de um cisne e acampando, um dos olhos percebeu qualquer risada infantil cuja manhã lhe trouxe uma maçã redonda, vermelha, perfeita. Ele sabia. Seu relacionamento com fadas era já de alguma intimidade, talvez justamente porque nunca lhes tenha pedido nada, um favor, um segredo (e uma de suas brincadeiras preferidas é esconder-se atrás da orelha de quem recebe o segredo – dizem ser por isso que muitos escapam para várias outras orelhas e talvez por isso também sinta-se, em português, aquela incômoda “pulga” atrás da orelha quando temos premonições), nada. Ele sabia que elas concederiam, apenas para poderem sumir transcendendo facilmente as contingências das três dimensões, brincando através do espaço para brincar ao tempo e voltarem, talvez, a seu berço, na infância, quando seu irmão lhe disse pela primeira vez sobre fechar bem, muito bem, os olhos. Ele não pediria conselho ou segredo, ele não as queria desaparecidas. Elas agora piscavam com força ao redor dele como um pequeno réveillon visto pelos infinitos periféricos do olhar. Ele mergulhou no infinito das fronhas e lençóis. As bocas, da face e do estômago, se pressionaram como os olhos e ele começou a acreditar que a ausência dela, tão presente ali naquele ventre de tecidos, espuma e carne, lhe trazia também água na boca e borboletas no estômago.

Renato Kress

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