quinta-feira, 5 de maio de 2011

Pedras Brancas

Naquela manhã seus pés visitaram o mar. E mesmo através dos raios do sol ela tinha certeza da presença das estrelas, como se percebe o olhar de um admirador ou se sabe a cor das flores em novembro. Sentou na beira da praia, mãos entrelaçadas sobre os joelhos e um olhar distante. Abriu a carta.

"Menina dourada,
tempo que não nos vemos. Talvez anos? Tá difícil contar os dias aqui porque já não me visitam e quando tinha visita eu sabia que era domingo. Eu achava que estava contando, mas eu devo ter errado porque se tô certo esqueceram meu aniversário esse ano, e talvez no outro.

Nesses dias, faz umas semanas, com certeza que mais de vinte luas, foram embora os que chegaram depois da chuva. Pedi que dona Flora deixasse essa carta na caixa da casa do uivo dourado, que era para você. Acho que ela vai entregar. Nesses dias depois da chuva vieram vários de fora e veio uma menina que me lembrou você. Ela não ficava em cima do muro nem tinha um cachorro preto, mas era curiosa e tinha o cabelo dourado e me deu uma flor. Lembro a flor que você me deu quando te vi em cima do muro, atrás das folhas da jabuticabera. Era para não contar que você estava ali. Foi nosso primeiro segredo. Faz tempo que você não vai à casa do uivo dourado, era bom conversar.

Outro dia dr. Firmino me explicou o uivo, sabia? Mas eu não acredito nele. Disse que não era nada mágico e que era o vento porque ficamos perto do vale aqui e tudo fica dourado porque é outono quando o vento faz o uivo. Explicou a direção do vento e até desenhou no guardanapo. Tudo fez bem sentido, e é por isso que eu não acredito, sabe? As coisas bonitas não têm explicação, elas são bonitas.

Ela continua lá, a casa, e toda vez que me deixam ir no jardim, bem ali à direita das pedras brancas, fica ela toda colorida das memórias. É que se olhar sem atenção é só uma casa cinza e bege no alto do terreno mesmo, mas isso é coisa de quem tem olhos de varrer mundo, não é de nós, que temos olhos para escavar, não é? Um dia da última que nos vimos acho você me falou de usar o olho para cavar ouro no mundo e nas pessoas e que eu tinha feito isso com você. Na hora eu sorri bem de mim mesmo porque não entendi, mas agora acho que entendo. Mas se não tem você ali aí é e não é a mesma casa e eu sinto e não sinto de olhar para ela.

A menina da flor me lembrou você e ela vinha sempre e ficava me olhando. Um dia virou de lado até quase cair buscando meu olho que tava no chão. Outra vez ela amarrou o tênis do dr. Firmino na cadeira e foi bom que ri como não lembrava mais que podia. Aqui é muito silêncio e quando cadeira arrasta e não é culpa nossa é sempre bom.

Me tiraram o espelho. Que um dia quebrei ele e resolveram que eu não podia mais. Daí ficou complicado fazer barba e a dona Flora faz quando acha que tá grande. Ela diz que eu tremo muito. Eu não sei de mim que não vejo faz tempo, mas parece que todo mundo aqui tá velho. Lembra do Antônio? Então, casou! Tá com a cara chupada o bichinho, acho que não come mais. Ele vem mas agora só cuida do jardim das pedras brancas. Nunca gostei das pedras brancas. Acho que é por causa delas que as cabeças aqui ficam redondas e brancas também. Agora sempre tem flores, mas eu preferia quando elas tavam indo embora, porque logo vinha o uivo dourado e a casa voltava a viver, porque tinha você." - Manicômio e Asilo Pedras Brancas, Petrópolis, 23 de Julho de 1999.

Conto e receita: Renato Kress

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