segunda-feira, 30 de julho de 2012

Silêncios


- ...e foi desesperador, seu padre! Ele ficava me olhando e sorrindo, sabe? Aquela imagem de Deus enorme, mas gigante mesmo, ficava me olhando com uns olhos azuis que pareciam dois oceanos e tudo aquilo era lindo, lindo demais. Mas era angustiante! Ocupava tudo! Daí ele começou a se afastar, sabe? Eu vi então o nariz e as barbas, e orelhas e todos aqueles cabelos que mais pareciam uma lã e então ele estava mais longe, eu vi o tronco, talvez de braços estendidos para mim, só que se afastando e ele irradiava muita luz, uma luz branca e azulada. Ao redor dele parecia tudo muito escuro, mesmo que ele emanasse muita luz, ainda assim, era como se estivesse num imenso sofá negro, como se fosse o universo, mas sem estrelas. Foi quando eu vi uma luz vermelha fraca, piscando à esquerda, e então, muito assim de repente e acelerando, um monte de pequenas luzes vermelhas e fortes e algumas ficavam amarelas, mas me davam a impressão de que eram pequenos seres vivos. Não sei. Como se fossem figuras negras e vermelhas piscando ao redor dele, e eram muitas, dezenas, centenas, então milhares e, à medida que ele se afastava elas ficavam mais nítidas, ondulando, como se fosse um rio de trevas ali circulando e aquilo tudo foi me dando náuseas. Então eu olhava para os olhos azuis, se afastando, mas ainda assim gigantescos, do tamanho de prédios agora, e eu podia ver as mãos estendidas e eu estava em cima de uma delas e ela estava se afastando. Aqueles seres vermelhos estavam todos eriçados, e giravam rápido e eu comecei a ver asas, asas de morcego! Enquanto os olhos ficavam do tamanho de caminhões, assim, as asas cresciam e alguns deles começavam a voar e tinham chifres e garras e... foi horrível, horrível! Porque os olhos estavam fixos em mim, olhando, sorrindo, mas não dizia nada! Nenhuma palavra! Só se afastavam, fixados em mim. Foi quando pensei em olhar para baixo porque estava em cima das mãos e em breve poderia não estar mais! Não sei o que me deu nem se o que aconteceu aconteceu porque olhei para baixo, mas... seu padre, quando olhei as linhas, as linhas das mãos que antes eram montanhas, agora eram rabiscos de giz branco sobre uma espécie de areia, de areia luminosa, mas quase já não me tocavam mais e eu me desesperei! Quando me desesperei levantei as mãos e tentei me agarrar ali, no que era chão ainda! E o chão... o chão... ficou negro! Completamente preto seu padre! Mas ainda havia chão e eu tinha uma sensação muito, muito ruim. Uma coisa opressiva, sabe? Mas havia muita, muita luz dos meus lados e acima de mim, uma luz branca, leve, suave, foi quando criei coragem para olhar para cima de novo. E eu olhei e era lindo! Centenas, não, milhares de seres luminosos, com asas e roupas claras e sorrisos e abraços e olhares piedosos, todos eles se aproximavam de mim, do alto e dos lados, mas... quando olhei no centro, ali, na minha frente... foi completamente horrível! Primeiro dois olhos de cobra, depois duas sombras, com chifres enormes, cheios de dobras e uma língua bifurcada dentro de uma mandíbula que sorria! Aqueles olhos poderiam me consumir completamente e eles me despiam e me batiam e me sorriam e quando me apercebi de mim vi dedos, do tamanho de prédios se fechando sobre mim! Tentei gritar em vão para os seres luminosos ao redor, mas eles pareciam me ignorar! Foi quando a figura negra e vermelha do centro começou a dançar, se divertindo com meu pânico! Fechei os olhos, mas não adiantou nada! Então olhei novamente para o chão e, quando vi, a figura no centro virava de lado e de costas e então eu vi de novo, aqueles lindos olhos azuis e aquela mão de suave areia luminosa e um sorriso plácido cercado por uma legião de horrendas criaturas que se mutilavam e cresciam e mergulhavam as presas no pescoço umas das outras. No centro ainda aquela barba de lã se afastava e eu podia ver agora o corpo inteiro, ainda que eu estivesse na ponta do dedo médio da mão dele e quando eu tentei falar algo - sinceramente não sei o quê, estava apavorada! - ele virou de lado e, nesse momento pude ver que as costas dele eram aquele monstro, aquela criatura desesperadoramente horripilante e quando ele virou de costas completamente a criatura começou a dançar para mim, e o dançar dela ensurdecia os seres de luz ao redor, esses seres que apareciam quando o monstro gigante aparecia ali atrás, enquanto as criaturas negras sumiam. Ele dançou e dançou por um longo tempo e quando acabou me olhou bem nos olhos, bem perto, apontou para trás de si, fez sinal de silêncio para mim, piscou o olho com as presas às mostra e virou, novamente. Foi quando acordei!

- Bem, minha filha, não cabe a nós interpretar os desígnios ou os grandes mistérios de Deus. Tenho fé que com uma semana de vindas aqui à igreja, 10 padres-nossos e 10 aves-maria todos os dias, principalmente antes de dormir, tudo se resolva.

Inês levantou incerta, ainda tensa por haver relembrado aquele misterioso e desesperador sonho que tivera noite passada. O padre saiu do confessionário com uma estranha pressa e já estava ao lado dela quando de um tropeço Inês chutou o degrau de madeira antiga estalando um ruído seco por todas as naves lateral e central da igreja. Foi quando o padre virou-se para ela, colocou o indicador sobre a boca e, piscando o olho, sorriu.

Conto e receita: Renato Kress

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