quinta-feira, 31 de março de 2011

Alquimia Íntima

E foi quando ela percebeu que estava enfeitiçada. Que o feitiço não é feito de poções mágicas com extratos de óleos de borboletas púrupuras ou pós de casco de unicórnio. Ele é feito da mágica de pequenas atitudes ao longo do tempo. Como quando ele enviou uma mensagem na hora em que ela bateu com o carro dizendo: "tenha um ótimo dia, qualquer coisa me liga!" Ou quando chegou na portaria e recebeu aquele livro que procurava a semanas com uma dedicatória simples: "Gotcha!" e o nome dele.

Ela percebeu como sempre percebemos, tarde demais. O feitiço havia amarrado as águas internas e agora ela vivia fluindo a mão ao telefone, os dedos ao msn, o olhar às poucas fotos que tinham no celular. Ela presentia naquele feitiço um toque de punição, porque toda vez que saía sem ele deixava enfaixado no quarto o próprio ânimo. Percebeu isso pela palavra "armadilha", que ecoava difusa pelos seus passos no centro da cidade. E foram tantas várias pequenas tocaias tão bem almofadadas pelo perfume das lembranças dele que agora ela já oferecia um sorriso a cada insistente vez que fosse enredada por essas pequenas memórias.

Foi quando olhou ao redor e passou a observar os caminhos que tantos pés levavam tantas gentes e que era hora do almoço e o centro fervia de pés flamulando. Pensou que nem todos percebiam que cada andar soltava pontas de tecido e cabelo, células e pontas de cigarro que formavam uma linha, um fio entre o antes e o próximo e percebeu a vida como teia. Foi quando sorriu ao perceber ele do outro lado da rua e entendeu a necessidade dos nós.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 28 de março de 2011

Pedacinho

E no que ela pôde ler de uma das cartas, depois da chuva, estava: 

"...Às vezes uma sombra de vazio me abraça e tenho vontade de ficar só. Dessas vezes guardo um aperto interno que penetra veias gelando um ar que não se inspira, mas que vive como um cristal dentro do peito. Esse cristal fica atrás do tórax, cravado ali no átrio esquerdo e sempre que eu sinto (muito) ele arrebenta alguma coisa por lá. Aí é que dói demais.


Hoje vi fotos de pessoas que amei. Prefiro dizer amei porque a palavra veste bem a nudez dos meus sentimentos.


Quando te vejo sinto vontade de te ouvir, quando te ouço sinto vontade de te ter aqui. Rezo que com você aqui eu não consiga querer mais nada... "

Conto e receita: Renato Kress

segunda-feira, 14 de março de 2011

Especular

Lílian andava aflita, a algumas semanas só ia ao banheiro de luz apagada, já não ia à praia, mal abria e já fechava rapidamente a porta central do seu armário no quarto. Só se permitia ver-se em espelho depois de completamente vestida. Passava horas, na volta do trabalho, assistindo a documentários sobre moda, cirurgia plástica, medições de gordura, aspiradores de vísceras, narizes novos, botox, maquiagens, vestidos, passarelas.

Não suportava a própria imagem. Sentia que envelhecia e isso era um fantasma a sussurar gargalhadas mórbidas no seu ouvido, diariamente. Aquela sombra, aquilo que seguia por trás de cada passo seu, lhe deformava o espírito e a mente, na presença viva e inapreensível da velhice em que se tornava, a cada dia. Era uma batalha inglória, sem vitória. Parecia-lhe que chegara ao meio dia da própria vida, onde sua sombra, sua parte negra, pútrida e ressequida lenvantaria do próprio chão para abraçá-la. Sentia que a partir dali caminharia em direção à própria sombra, ao pior de si mesma. Perdia-se em amaldiçoar a luz do passado, temia a inevitável e óbvia negritude do futuro.

Não suportava o próprio corpo. Sentia que sua pele perdia a tez que apresentava nas antigas fotos e essa sensação era como uma pedra sobre sua cabeça. Em verdade o tempo lhe parecia uma tonelada de pequenas rochas presas a cada parte de seu corpo, esgarçando diariamente sua pele, arrebentando cada fio de seu cabelo, enquanto andava. Começara a sentir fortes dores nos pés, em consequência do peso que sua culpa suportava. Não deixou de usar seus saltos, mas saía sempre menos de casa. Não importava o que dissessem amigos, família, colegas, ela sabia que já não era aceitável, amável, desejável.

Então correu a comprar papéis de parede, com os quais murou os espelhos da sala e do quarto. Deixou apenas o do banheiro. Onde a luz vinha sempre de fora sendo vaga ou nenhuma. 

Márcio, ao voltar de viagem, encontrou no chão do banheiro um pacote ósseo de cabelos ruivos, embalado por um robe preto. Aos 20 anos enterrou a mãe, de 37.

Conto e  Receita: Renato Kress

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