quinta-feira, 10 de novembro de 2011

#Meaperta (Microconto ao estilo twitter)


Andava tão carente que amarrou um plástico bolha na cintura e saiu com a camisa: "Me abraça?".

Microconto e receita por: Renato Kress

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Homens de família

Alô? Fala Beto, meu querido! Então, é o Cássio! Tempo né? Como assim que Cássio? Cassio do Jornal... é, da redação! Escuta: e o nosso vereador, hein? Poxa cara, que chato! Pois é, coisa da oposição, eu sei... a gente sabe! Mas tô ligando justamente pra te dar uma mão nessa! Sei que num momento desses o nosso vereador deve estar aí precisando dos amigos e sei que você é o cara que tá por perto... então: é que a matéria vai sair amanhã rapaz! Pois é, mídia digital a coisa toda flui que a gente não vê. Parece tsunami lá na editoria. É que eles me mostraram uma foto do nosso vereador fichado, rapaz! Pois é, pegaram pesado! Imagina a foto dele lá frente e lado, aquela bem feia mesmo! Incriminando um pai de família, agora veja você rapaz! Mas a gente pode dar um jeito nisso, porque, você sabe, amigo é pra essas coisas. Então, tem uma foto dele saindo da delegacia que fica mais elegante, ainda mais que saindo é melhor que foto entrando, né não? Então, pois é. Fiquei sabendo aí que o sogro dele é dono daquela faculdade... é é, essa mesmo. Então, olha que coincidência, meu amigo! Minhas duas sobrinhas estudam lá, cara! Pois é... mundo pequeno, não é não? Tô te comentando porque a foto do nosso vereador fichado saiu feia mesmo e as meninas se esforçam, mas não estão muito bem, entende? Pois é... espero, espero... Opa, maravilha! É nessas horas que a gente vê quem é que é amigo, rapaz. Outra coisa que eu notei aqui, na diagramação, é que colocaram bem na página da esquerda e na parte de cima. Não, não tem nada não, mas é que é por lá que o pessoal começa a ler quando abre o jornal, sabe? Já na parte interna e do lado direito quase ninguém vê. Sabia que até anúncio desse lado é mais barato? Pois então! Te digo! Então, me veio aqui que o primo do Tonico tem aquela concessionária na entrada do bairro. É, o Tonico, o afilhado do nosso vereador. Coisa de um mês e o meu do meio tá fazendo dezoito, Beto! Tava pensando num palio para o rapaz, mas não queria um simples não, porque ele é menino esforçado, sabe? Passou na federal de direito, menino de bem, meu orgulho! Tava pensando num daqueles "adventures"... claro, espero sim... ô Beto! Acabei de me lembrar que tem um espaço pra eu jogar de repente essa matéria absurda contra o nosso vereador na quarta página. A gente tira do destaque, mas me fala aí o que você vai conseguir do carro que eu vou dando uma olhada nisso pra você, meu irmão!... Opa, maravilha, maravilha! Weekend serve também, afinal é primeiro carro, mas é completo né? Beleza! Então Beto, tava aqui lendo a matéria como vai sair amanhã e se eu mudar muita coisa pode dar problema aqui pra mim e não queremos isso, certo? Pois então! Tô pensando aqui que eu posso incluir ao invés de tirar. É, é. Posso incluir um "talvez" aqui e ali, um "provável" antes de "evidências", um "suspeito" no lugar de "acusado", que que você acha, meu rei? Então, tudo isso a gente faz com carinho pelo nosso vereador, claro! O que eu tava aqui lembrando foi que hoje cedo a Míriam - lembra da Míriam, minha esposa? Então! É, vai bem sim - me encheu que eu tinha dito que íamos viajar no fim do ano - acredita que eu nem lembrava disso mais? Pois então! - e agora fiquei pensando nessas promoções aí e me lembrei que as filhas do nosso querido vereador têm uma agência de viagem, não é não? Ah, é pequena? Mas isso é bobagem rapaz! Nunca fomos a Campos de Jordão, por exemplo! É possível, não é? Poxa, maravilha! Dá um toque nelas aí que eu vou fazer sempre o possível para dar aquele apoio ao nosso vereador. A gente sabe que nessas horas precisamos é dos amigos! Sempre! Então é isso: me passa até às onze os e-mails com a resolução da questão da faculdade das minhas sobrinhas - mesmo sobrenome que o meu, é, Figueira, uma faz letras a outra comunicação, as duas no terceiro período, Tatiana e Bruna -, a data que eu passo pra pegar o carro do moleque e as passagens pagas lá, que eu mexo aqui na edição aqui pra dar aquela força pro nosso vereador! Que isso, rapaz! Tamos aí pra isso mesmo! Precisando é só falar! É um homem de família ajudando o outro, nada mais que a nossa obrigação! É de coração, irmão, é de coração! Manda um abraço pro nosso vereador e pode falar que tamo junto nessas horas, não é oposiçãozinha que vai derrubar o nosso homem, não! Abração!

Conto e Receita: Renato Kress

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ocípite



O frio cortante passava por entre as frestas dos tecidos, arestas das construções e sussurrava imprecações aos ouvidos das mulheres casadas. Era um toque de recolher mudo que dançava uma coreografia tímida no consenso programado entre as nove horas, o toque dos sinos e o rangir das molas das camas dos habitantes daquele vilarejo.

Naquela noite os cachos castanhos sobre a cabeça dela tocaram o travesseiro felizes. Entre seus dedos, à luz da lamparina a óleo que tremeluzia um fraco brilho no chão, estava a razão do sorriso incomum sobre as maçãs do belo rosto camponês: uma moeda de prata grossa, incompatível com os dedos frágeis de uma menina de quatorze anos. Aquela moeda era motivo para que toda a felicidade do mundo valseasse a seus olhos verdes, para que ela lutasse bravamente, com o braço esquerdo estendido para fora da cama, contra o sono que lhe insistia em não carregar consigo o brilho amarelado da lamparina refletido no objeto entre seus dedos. Ele havia dito que voltaria para pegar aquela moeda, aquele brilhante mundo circular entre frágeis dedos.

No trepidante das pálpebras entre o sono e a vigília, o peso do primeiro estirou aquelas falanges delicadas, sugando a força de seu pulso que, surpreso, travou-se de imediato enquanto os olhos brilhavam de susto! Era o som metálico sobre as tábuas de madeira, a moeda que batia e rolava pela fresta da porta! Ela levantou de um susto numa tensão que prenunciava o medo.

Caiu sobre as tábuas escorrendo os finos dedos num tatear cego, vítima de uma lâmpada que parecia brincar com seu desencanto crescente. Sem a moeda talvez ele não voltasse! Foi quando seu pulso, em pânico, esbarrou no frio metálico e reiniciou o som da moeda que se perdia em direção às frestas frias da porta. E vazou.

Sua mão esquerda correu para trás em busca da lamparina bruxuleante enquanto a palma direita travou-se de frio e tensão sobre a maçaneta à sua frente. A falta da esperança, que crescia na ausência da moeda, era maior que o receio das histórias sobre a Senhora da Noite. A moeda estaria do outro lado, caída, ela pegaria e voltaria a dormir, tendo o cuidado de esconder bem dentro da fronha aquele talismã dele.

Abriu a porta de um susto e nada mais pôde ouvir que cascos longínquos de cavalos e o sussurrar irritante do vento sobre as árvores secas de uma noite sem lua. Agachou-se na soleira com a lamparina em frente ao rosto, vasculhou o que pôde da varanda, das duas cadeiras, das reentrâncias daquele chão de veios. Nada.

Teve a leve impressão de um brilho no mato, a poucos metros à frente da casa, entre a porta e os álamos brancos. Os cavalos, por algum motivo, estavam parecendo mais próximos, mas haveria de ser o vento... e só o vento. O vento trazendo também o som dos arfados dos cães do vizinho e os cavalos, mais próximos. Não que ela lembrasse de que os vizinhos tivessem cães, mas talvez um cão perdido, ou só o vento. Os apelos do vento foram ignorados, mesmo quando apagou a frágil lamparina. Mirou o ponto onde o brilho cresceu na relva e correu às trevas. Tropeçou. Talvez um galho, talvez uma pedra ou um buraco, tropeçou.

Seu coração lha lembrou, de sobressalto, o galope desenfreado dos cavalos ensurdecendo sua alma quando as sombras da noite se abriam numa carruagem de prata atada a corcéis de um negro azulado que, seguindo o crescer veloz do vento e trazendo um frio de outro plano, circundaram ela antes de parar, à sua frente. Se ouvia o uivo de cachorros e lobos e alguma gravitação natural das pernas a puxava, força qualquer cada vez mais frágil, para dentro de casa. A forma lunar da carruagem lhe chamou a atenção - mais que os olhos de bruma azul dos corcéis - eram ferragens trabalhadas como ela jamais havia visto nos seus mais insanos devaneios, e brilhavam como se tivessem pequenas linhas de pura luz correndo por seus ângulos circulares.

Ela estava entre o desespero, o pânico e o fascínio quando percebeu a falta do som dos cães, exato momento em que a porta lateral começou a escorrer descendo a bruma azul ao nível do solo. Dois novos olhos. Duas lanternas de um azul sobrenatural preenchiam o ar com o perfume de mil damas da noite, quando seus negros cabelos delineavam o contorno alvo de seu colo e a figura em suas unhas azul marinho sorria maliciosamente para a menina no chão. Para a menina, ela era a mais linda das lindas, o segredo da noite. A cada passo para fora da carruagem, por detrás de seus calcanhares altos, surgiam dois cães à direita ou dois lobos à esquerda, presas à mostra, olhar fixo nos seios da menina.

Pares de presas de um dos lobos se adiantaram aos joelhos da menina, numa velocidade tal que chegaram e voltaram movendo mais o vento que os reflexos possíveis. Balançando o rabo ele voltou para lamber a mão daquela mulher incrível, que abriu um sorriso - e bem poderia ter presas de pérola - e estendeu à menina a mão esquerda com a moeda de prata, e com a direita lhe apontou o interior da carruagem.

Mil espectros, súcubos e íncubos seguiam, como ondas de um cinza azulado, por trás da carruagem. Cada um deles, em sua língua, ajoelhados, com suas mandíbulas arqueadas e formas tremeluzentes, pareciam suplicar que a menina fosse embora, que esquecesse moeda e carro, que fosse, que fosse...

Foi quando à porta de sua casa, o grito de sua mãe despertou seu avô, enquanto via seu vestido branco mergulhar na noite, no exato ponto onde, na manhã seguinte, encontraram uma estranha moeda, grossa, de prata.

Conto e receita: Renato Kress



Ocípite é o nome da segunda Harpia - mulher alada ou ave com cabeça feminina que raptavam as crianças e as almas - seu nome significava "vôo rápido". Viviam nas "ilhas do fim do mundo" e perseguiam os mortais, roubando-lhes alimento ou sujando tudo com seus excrementos. Suas outras duas irmãs se chamavam Aelo e Celeno e significavam "Tempestade" e "Obscuridade".

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Perene

Passeavam ele e ela lentamente numa quarta feira ensolarada, procurando as sombras, com os braços entrelaçados e falando num tom que só o outro poderia ouvir.  Timbre era leve, pausado. No canteiro à frente da esquina Adamastor, 87 anos, diz a Constância, 84: Vou matar Eugênio!

A senhora estanca a passada já lenta e dispara, num olhar amedrontado:
- Você está louco?
- Ele morre hoje. - diz o senhor, com os olhos fixos nas pedras portuguesas à sua frente enquanto a mão de Constância desliza para longe de seu braço para se entrelaçar na outra mão - agora dedos cruzados - em sinal de súplica.
- Pára com isso! Sabe que não vai, que não pode, não vamos...
E o senhor esguio, frágil, de pescoço longo e ombros recurvos permanece estanque, braços esticados e punhos cerrados. - Hoje ele morre!

É quando ela abre um sorriso - dos muitos que ele não vê - e diz: É assim. Vá! Mate! Você sempre desiste dos teus personagens, se não no início talvez no meio. Têm fim mas não envelhecem, a maior parte, principalmente os mais interessantes como Eugênio, morrem prematuros na ideia da ideia, enquanto ficamos só nos dois. Já percebeu o quanto a casa está despovoada?

O longo pescoço elevou a cabeça até os olhos de Constância.

- É. Despovoada! Nunca percebeu? Quando casamos a casa tinha eu e você e mais de uma centena de personagens, era o menino Tinoco, o capataz Alberico, o padeiro Vico, a dançarina Rubra, a pianista Laura, aqueles ladrões, os irmãos Katz, toda a família Figueira... isso sem contar os animais, o gato Klimt, a garça Graça... amei cada uma das tuas criações. Casei com teu corpo, mas levei principalmente esse parque maravilhoso de diversões, esse inexplicável circo de criações fantásticas na tua mente. São esses os nossos filhos que ficam, enquanto Lidia, Manoel e Clara se vão. Não gosto quando você mata nenhum deles. Desapareça com ele, mas não mate. Quero dar um destino aleatório e romântico a Eugênio no café da manhã de amanhã. Não desista dele!

- Ele é um covarde! Um néscio!

- Não desista dele! - disse a mão esquerda dela encontrando o punho cerrado dele...

- Você me acha um covarde? Eu desisto muito fácil? - disse a mão direita dele a caminho da dela...

E de si para si, entre as orelhas de Constância, ficaram sozinhas as palavras: "se eu tivesse desistido uma única vez..." e o sorriso e o beijo e o caminho de casa.

Texto e receita: Renato Kress

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O velho conta sobre nova Atlântida

naquele dia de outono nublado o velho Kleper sentou sobre as pedras da chapada e apontou para o sul. Todos sabiam que era a hora em que ele contava a história da Nova Atlântida, da Atlântida que ele chamava de "a invertida", onde a civilização atrasada era a que ficava embaixo.

E foi ali - ele dizia com uma certa voz que ecoava silente no abismo à sua frente - e foi ali que tudo se sucedeu. E era muita questão junta. Era do povo indio que não queria suas alma alagada com usina, era do povo do sertão que cansava das decisão de mexer e não mexer nos rio, era do povo que vive do verde que se ocupava dos código das floresta, era vida da floresta que ressentia do desapreço dos homem. Era dos remédio que nunca chegava, da educação que minguava, da alma do povo que secava porque ali - e apontou de novo para o sul de onde estávamos todos - ali ficava uma esponja bruta, dessas ávida ressequida que num termina nunca o inspirar do que é dos outro. Ali aquela esponja era espírito de nunca cansar, que sugava tudo ao redor até secar a planta dos pé dos que ali morava. Toda boca secava e sangrava e os pé era que parecia tijolo seco no sol e tudo se dizia que era do tempo e era do vento e era do seco daquele espaço, mas na verdade mesmo era a alma daquela esponja tragano toda vida do redor. Era ganância do povo do centro, do povo de lá, secando tudo, rachando as rochas, os pés, as almas. Nesse mesmo dia de hoje, a dez anos atrás, foi quando se resolveram que iam mesmo desviar as águas. E quem resolveu não foram os do centro, que sugavam e usavam e descartam as águas e flores e alma dos da periferia. Quem resolveu foi a periferia, os pequenos. E foi trabalho silencioso, de mêis, trabalho de surdina, de segredo sagrado. E ficaro cavano por mêis, povo índio, povo velho, povo criança, povo que ensina, povo que cuida, povo que constrói casa e viaduto e creche, todos os povo junto, e coisa de mêis. O rio se desviou e o povo do centro, os que suga a vida dos outros povo, só viram quando era tarde. Foi bem numa quarta, eles votava aumento dos salário. Casa cheia, cês imagina. Veio a onda primeira e levo os carro, as casa os prédio, as mulher deles. Levou tudo. A onda segunda, menor, só passou pra lavar as esperança dos que num morrero na primera. E era um monte de vampiro boiano, e era ali um monte de povo livre. Hoje ali fica a Atlântida Invertida, pode ir lá mergulhar pra vê os prédio. Engenharia mágica das arquitetura do antigamundo. Mas num se ingane com as beleza dos prédio, a alma do povo que lá vivia corrompeu, as veia já nem tinha mais sangue, era tudo areia e centavos. Se duvida vai lá, mergulha, procura, mas a água nem turva é, que de sangue mesmo eles não tinha nenhum.

Receita e conto: Renato Kress

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Pedras Brancas

Naquela manhã seus pés visitaram o mar. E mesmo através dos raios do sol ela tinha certeza da presença das estrelas, como se percebe o olhar de um admirador ou se sabe a cor das flores em novembro. Sentou na beira da praia, mãos entrelaçadas sobre os joelhos e um olhar distante. Abriu a carta.

"Menina dourada,
tempo que não nos vemos. Talvez anos? Tá difícil contar os dias aqui porque já não me visitam e quando tinha visita eu sabia que era domingo. Eu achava que estava contando, mas eu devo ter errado porque se tô certo esqueceram meu aniversário esse ano, e talvez no outro.

Nesses dias, faz umas semanas, com certeza que mais de vinte luas, foram embora os que chegaram depois da chuva. Pedi que dona Flora deixasse essa carta na caixa da casa do uivo dourado, que era para você. Acho que ela vai entregar. Nesses dias depois da chuva vieram vários de fora e veio uma menina que me lembrou você. Ela não ficava em cima do muro nem tinha um cachorro preto, mas era curiosa e tinha o cabelo dourado e me deu uma flor. Lembro a flor que você me deu quando te vi em cima do muro, atrás das folhas da jabuticabera. Era para não contar que você estava ali. Foi nosso primeiro segredo. Faz tempo que você não vai à casa do uivo dourado, era bom conversar.

Outro dia dr. Firmino me explicou o uivo, sabia? Mas eu não acredito nele. Disse que não era nada mágico e que era o vento porque ficamos perto do vale aqui e tudo fica dourado porque é outono quando o vento faz o uivo. Explicou a direção do vento e até desenhou no guardanapo. Tudo fez bem sentido, e é por isso que eu não acredito, sabe? As coisas bonitas não têm explicação, elas são bonitas.

Ela continua lá, a casa, e toda vez que me deixam ir no jardim, bem ali à direita das pedras brancas, fica ela toda colorida das memórias. É que se olhar sem atenção é só uma casa cinza e bege no alto do terreno mesmo, mas isso é coisa de quem tem olhos de varrer mundo, não é de nós, que temos olhos para escavar, não é? Um dia da última que nos vimos acho você me falou de usar o olho para cavar ouro no mundo e nas pessoas e que eu tinha feito isso com você. Na hora eu sorri bem de mim mesmo porque não entendi, mas agora acho que entendo. Mas se não tem você ali aí é e não é a mesma casa e eu sinto e não sinto de olhar para ela.

A menina da flor me lembrou você e ela vinha sempre e ficava me olhando. Um dia virou de lado até quase cair buscando meu olho que tava no chão. Outra vez ela amarrou o tênis do dr. Firmino na cadeira e foi bom que ri como não lembrava mais que podia. Aqui é muito silêncio e quando cadeira arrasta e não é culpa nossa é sempre bom.

Me tiraram o espelho. Que um dia quebrei ele e resolveram que eu não podia mais. Daí ficou complicado fazer barba e a dona Flora faz quando acha que tá grande. Ela diz que eu tremo muito. Eu não sei de mim que não vejo faz tempo, mas parece que todo mundo aqui tá velho. Lembra do Antônio? Então, casou! Tá com a cara chupada o bichinho, acho que não come mais. Ele vem mas agora só cuida do jardim das pedras brancas. Nunca gostei das pedras brancas. Acho que é por causa delas que as cabeças aqui ficam redondas e brancas também. Agora sempre tem flores, mas eu preferia quando elas tavam indo embora, porque logo vinha o uivo dourado e a casa voltava a viver, porque tinha você." - Manicômio e Asilo Pedras Brancas, Petrópolis, 23 de Julho de 1999.

Conto e receita: Renato Kress

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Controle

Pólvora no chão. Pólvora no chão, um estalo às quatro horas da tarde na HochstraBe e aquele a quem substituo está a cinco centímetros das minhas botas. Odeio estar perdido. Um rapaz ruivo de macacão negro está me fazendo perguntas insessantemente e tudo o que me passa pela cabeça é que Rudolph Meinkatz, a quem eu deveria estar levando algemado, virou para trás e riu quando ouviu gritarem meu nome pela Holleralle. Odioso estar perdido.

Kroitzenberg nunca gostou do delegado Appenheit. Foi o primeiro a se aproximar do corpo estendido de lado no meio fio e a retirar dos bolsos os documentos e a carteira do recém falecido delegado de Bremen. Parou à minha frente com os olhos brilhando, esperou que eu estendesse a mão e deu-me seus pertences, incluindo o anel de noivado. Não estivesse ao meu lado na carreira atrás de Meinkatz juraria que aquele sorriso displicente havia disparado contra Appenheit às escondidas. Mas ali a satisfação era genuína e reforçada pelo álibi de que estava a alguns passos atrás do novo delegado quando deu-se o tiro.

Observei a rua. Estava estranhamente impassível como se quem houvesse disparado o tiro fosse algum tipo de força tenebrosa da noite ou espírito ancestral. Pelo horário todos ali haviam visto tudo: quem disparou, de onde, para onde fugiu, qual rota tomou, tudo. Fui ter com Hazzel, diretor do correio que fechava as portas à hora do ocorrido. Seu olhar ao longe via através de mim e quando nos aproximamos ele me confessou que estranhamente não havia visto nada - "Estava de costas, batendo o cadeado, o senhor bem sabe. Tiros não se ouvem na principal, meu bom rapaz. Quando o primeiro estalo correu me agachei. Tenho esposa e duas meninas...".

"Meu bom rapaz" me irritou profundamente. Virei de lado e dei-lhe as costas assim que terminou de falar. Agradeci secamente. Estava mentindo. Fui à florista que trabalhava do lado oposto a Hazzel, Mina Gertrude ela disse se chamar. Todas essas polacas mal nascidas se chamam Gertrude ou Berta perante autoridades. Que seja. Disse-me que vira Appenheit descer o meio fio confiante, sozinho, em seu sobretudo carvão, mas que no momento do estampido, vendia crisântemos a um jovem rapaz e sua acompanhante, de maneira que escondeu-se e nada mais viu. Essa não parecia mentir, ao menos sobre isso. Afinal para que mentir se não acrescentou em nada? Para saber que passava o meio fio basta olhar a posição do corpo, o sobretudo era o de sempre.

Passei a mão da testa ao queixo irritadamente. Olhei ao redor como um caçador alucinado e todos os olhos fugiam de mim. Em vão procurei na esperança de que algum caráter nascesse por entre aqueles olhos escorregadios, aquelas mãos nervosas a varrer, a beber a fingir com agressividade latente que era apenas mais um entardecer na cidade. Mas não era. Acordei sub-delegado e em meio a uma perseguição rotineira antes de voltar para minha Mia com soldo suficiente para nosso casamento terei de passar na casa de Appenheit e falar-lhe à sua senhora e crianças. Não é uma simples tarde. Odeio estar perdido.

Corri sobre um grupo de rapazes de bom nascimento sentados à janela da taverna Grivern. De onde estavam teriam visto a tragédia por um ângulo privilegiado e, visto que estivessem sentados, não poderiam "agachar" ou "se esconder". Peguei-os de sopetão na espectativa de arrancar algo. O de cabelos negros e olhos verdes se adiantou em relatar que justamente àquela hora dois de seus conhecidos, Arendt e Werkampf, estapearam-se no centro da taverna e marcaram à alta voz um duelo para o dia de amanhã, o que chamou a atenção a ponto de estarem todos voltados para o centro da taverna quando do ocorrido. Atalhou que teria enorme prazer em auxiliar "às forças competentes" e que olharam pela janela de imediato ao estouro da pólvora, mas era um horário movimentado "com certeza quem estivesse na rua teria visto muito melhor, delegado....". A vontade de esmagar a traquéia mentirosa daquele menino me pressionou o pulso e foi quando olhei para suas mãos, sobre a mesa, girando um anel de confraria de duelos. As confrarias de duelos são muito comuns por toda Alemanha. Agradeci ao bom Deus por aquele anel. O assassino era um nobre!

Deixei as ruas tranquilo. Não havia o que investigar e ninguém me diria nada. Fui até a delegacia e peguei minhas anotações sobre Meinkatz - assassino de aluguel. Corri até o escritório de Appenheit e notei seu chapéu sobre o cabideiro. Saíra às pressas. Tanto faz. Olhei sua agenda do dia anterior: fechar club Wernhalt, OS. OS, ordens superiores. O Wernhalt era um clube aristocrático de duelistas e esse "ordens superiores" me pareceu muito do que Appenheit vinha me comunicando sorrateiramente sobre desarticular os bem armados nobres e trazer a força para os aparelhos do Estado. Ele desagradou a alguns nobres, mas qual a ponto de levar um tiro? Mandei chamar a Obenwerk, que lhe acompanhou ontem e este me confessou que Appenheit tivera uma ligeira discussão ao fechar o club. Uma discussão com Rudolf Battenberg! Sem perceber cai na cadeira de Appenheit, cabeça baixa, entre os joelhos, Battenberg não só é campeão de tiro em toda Bremen como é parente da casa dos Habsburgo. Óbvio que ninguém falaria nada. Era um crime solucionado e insolúvel.

Eis que meus olhos se levantam e vêem a ficha de Meinkatz. O que é um Meinkatz perto disso? Nada. Nada sobre minha mão esquerda. Sobre minha mão direita a agenda de Appenheit. À minha frente uma fotografia de sua esposa e crianças. Foi quando abri suas gavetas e peguei um bloco, escrevi às pressas duas páginas frente e verso, lacrei eu mesmo o envelope e mandei que Obenwerk entregasse à viúva de Appenheit. A segunda folha foi, com uma nota de cinquenta marcos, enrolada em um envelope velho e comum do nosso almoxarifado. Essa segunda folha foi entregue a Kroitzenberg para que chegasse, por vias tortuosas, aos cuidados de Meinkatz. Com um sorriso nos lábios escrevi a terceira carta à família Battenberg, sem remetente, anunciando que se acautelassem sobre suas vidas. Confesso um certo ar de frenesi ao ver as três cartas saírem de minhas mãos e seguirem seus caminhos.

Três semanas depois das cartas entregues recebi em minha mesa um buquê de flores da senhora Appenheit. Battenberg havia sido alvejado às costas por um assassino de aluguel, que foi preso a caminho do que achava que seria o encontro onde receberia a segunda parte do seu pagamento. Alertei aos Battenbergs na esperança de que alvejassem Meinkatz junto. Sentando à minha nova cadeira olhei para as flores da senhora Appenheit. Meu sorriso me trouxe o controle.

Conto e receita: Renato Kress

segunda-feira, 4 de abril de 2011

SAC*

Pernas atoladas numa piscina sem fim de vermelhos aparelhos telefônicos, tocando simultaneamente, todos, quentes, flamejando seus tornozelos e joelhos, ensurdecendo sua alma. A cintura e o tronco para fora do mar vermelho suportavam o vento congelante num sussurro inquietante. "Alô?", "aguarde um minuto por favor", "estamos transferindo sua ligação para o setor responsável", "não há nada que eu possa fazer, senhor, mais alguma coisa?", "aguarde por gentileza" e mil orquestras tocando simultaneamente músicas lentíssimas enquanto suas mãos percorriam os aparelhos tentando encontrar um equilíbrio entre queimar e congelar. A carne, ardendo em frio, quebrava partes e soltava cacos sobre os telefones vermelhos. O fedor da própria carne queimada trazido pelo vento frio a suas narinas lhe fazia vomitar e eram cabos que lhe escorriam pela boca, congelados e ardentes, simultaneamente.

Fez-se então silêncio naquela paisagem desesperadora e Antônia pôde ouvir um telefone tocando. Eram suas preces sendo ouvidas, com certeza. Mergulhou avidamente, quebrando e trincando partes congeladas de suas costas e rosto atrás do toque do telefone. A dor era tamanha que ela pensou que iria desmaiar, mas não, tinha que atender àquele telefone que parecia cada vez mais perto. Ferveu os músculos das mãos sem pele e liquefez suas orelhas tendando em vão atender aquelas brasas vermelhas. Por o que pensou que fossem horas e horas e o toque do telefone cada vez mais ensurdecedor, as brasas tocando partes dos ossos das articulações dos seus pés quando levantou um aparelho e o toque parou.

- A-Alô!
Do outro lado da linha uma voz suave, delicada, quase angelical disse polida e muito pausadamente:
- Aguarde por favor, um de nossos atendentes irá entrar em contato em breve.

Sua garganta parecia formar pequenas crostas de gelo por dentro e ela não teria forças para dizer palavra alguma quando sentiu que o vento cortante lhe encheu a boca de restos flamejantes de pós de telefones queimados. Vomitou uma tosse qualquer que lhe ardia a espinha.

- Alô!
A voz no telefone era elegante, macia. O som do vento lhe fez grudar o telefone fervente na lateral do rosto, já sem orelha.
- ALÔ! PELO AMOR DE DEUS, PELO AMOR DE DEUS, O QUE ESTÁ ACONTECENDO? ME AJUDA!! ME AJUDA, ME AJUDA!!!
A voz parecia ainda mais doce e delicada e respondeu tranquilamente:
- Com quem a senhora gostaria de falar, por favor?
- ME TIRA DAQUI!!!! PELO AMOR DE DEUS, ME TIRA DAQUI!!! ME TIRA....
E lágrimas começaram a percorrer o rosto de Antônia na forma de pequenos cristais que laceravam suas bochechas congeladas à medida que rolavam entre soluços arenosos congelados.
- EU NÃO AGUENTO MAIS!!!! PELO AMOR DE DEUS ME TIRA DAQUI!!!!
E o gosto de sangue se misturava ao frio insuportável nas paredes de sua boca. E partes do telefone já esfumaçavam partes dos ossos de sua mão quando ela ouviu a voz ao outro lado, lenta, calculada:
- Por favor, fale pausadamente. O que a senhora deseja?

- DEUS!!!!
- No momento Deus está ocupado. A senhora gostaria de pegar uma senha e aguardar ou prefere outro de nossos atendentes?

- O QUÊ É ISSO? PELO AMOR DE DEUS PARA COM ISSO!!!!! ME TIRA DAQUI!!!!
- Entendi. A senha para falar com Deus é 4563402948593920495830-3945123124523. A senhora gostaria de anotar o protocolo dessa ligação?
- AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!! NÃO NÃO NÃO NÃO!!!!!
- Por favor, fale pausadamente. A senhora gostaria de cancelar seu requerimento?
- ME TIRA DAQUI!!! PELO AMOR DE DEUS!!!!! ME TIRA ME TIRA!!!! AHHHHHHHHHHH!!!
- Aguarde um instante, estamos cancelando seu requerimento. - Entra Berceuse de Brams.

Antônia já havia perdido os pés e tornozelos quando a voz voltou. Dois dedos de sua mão esquerda haviam quebrado, caído e começavam a chamuscar em pequenas faíscas.

- Por gentileza, a senhora gostaria de falar com quem?
- CRISTO!!!! CRISTO!!!!
- Entendi: Krishna, Aguarde por favor.

Antônia largou o telefone sobre as brasas e começou a rezar mordendo sua própria carne congelada. Foi quando ouviu a voz do telefone por toda parte, como se viesse de todos os telefones simultaneamente:
- Por favor, não deslige. A sua salvação é muito importante para nós!

Perdeu mais um dedo tateando todos os aparelhos até descobrir um em que pudesse ouvir a voz suave, melíflua:
- O tempo de espera para falar com Krishna é de aproximadamente sete anos. A senhora gostaria de pegar a senha?

- EU NÃO MEREÇO ISSO!!!! DEUS DEUS DEUS!!!!
- Olá. Para nossos registros internos gostaríamos de saber o que a senhora fazia antes de estar aqui. Lembre-se de falar pausadamente.
- ME TIRA DAQUI!!!! ME TIRA DAQUI!!!!! ME TIRA DAQUIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!!!!!!
- Desculpe-me, sem essa informação não podemos prosseguir. A senhora poderia dizer qual a atividade exerce profissionalmente?
- TELEMARKETING!!! EU TRABALHO COM TELEMARKETING!!! PELO AMOR DE DEUS ME AJUDAAAAAAAAAAAA!!!!
- Ah, telemarketing? Aguarde, sua perdição é muito importante para nós.
- COMO? PERDIÇÃO?
- Oh, perdão! "Salvação", a sua "salvação" é que é importante para nós!

Foi quando seu pulso, frágil, quebrou misturando o telefone a todos os demais, vermelhos, flamejantes...
- MAS QUE DIABOS!!!!

- Pois não?

Conto e Receita: Renato Kress

* Serviço de Atendimento do Capeta

quinta-feira, 31 de março de 2011

Alquimia Íntima

E foi quando ela percebeu que estava enfeitiçada. Que o feitiço não é feito de poções mágicas com extratos de óleos de borboletas púrupuras ou pós de casco de unicórnio. Ele é feito da mágica de pequenas atitudes ao longo do tempo. Como quando ele enviou uma mensagem na hora em que ela bateu com o carro dizendo: "tenha um ótimo dia, qualquer coisa me liga!" Ou quando chegou na portaria e recebeu aquele livro que procurava a semanas com uma dedicatória simples: "Gotcha!" e o nome dele.

Ela percebeu como sempre percebemos, tarde demais. O feitiço havia amarrado as águas internas e agora ela vivia fluindo a mão ao telefone, os dedos ao msn, o olhar às poucas fotos que tinham no celular. Ela presentia naquele feitiço um toque de punição, porque toda vez que saía sem ele deixava enfaixado no quarto o próprio ânimo. Percebeu isso pela palavra "armadilha", que ecoava difusa pelos seus passos no centro da cidade. E foram tantas várias pequenas tocaias tão bem almofadadas pelo perfume das lembranças dele que agora ela já oferecia um sorriso a cada insistente vez que fosse enredada por essas pequenas memórias.

Foi quando olhou ao redor e passou a observar os caminhos que tantos pés levavam tantas gentes e que era hora do almoço e o centro fervia de pés flamulando. Pensou que nem todos percebiam que cada andar soltava pontas de tecido e cabelo, células e pontas de cigarro que formavam uma linha, um fio entre o antes e o próximo e percebeu a vida como teia. Foi quando sorriu ao perceber ele do outro lado da rua e entendeu a necessidade dos nós.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 28 de março de 2011

Pedacinho

E no que ela pôde ler de uma das cartas, depois da chuva, estava: 

"...Às vezes uma sombra de vazio me abraça e tenho vontade de ficar só. Dessas vezes guardo um aperto interno que penetra veias gelando um ar que não se inspira, mas que vive como um cristal dentro do peito. Esse cristal fica atrás do tórax, cravado ali no átrio esquerdo e sempre que eu sinto (muito) ele arrebenta alguma coisa por lá. Aí é que dói demais.


Hoje vi fotos de pessoas que amei. Prefiro dizer amei porque a palavra veste bem a nudez dos meus sentimentos.


Quando te vejo sinto vontade de te ouvir, quando te ouço sinto vontade de te ter aqui. Rezo que com você aqui eu não consiga querer mais nada... "

Conto e receita: Renato Kress

segunda-feira, 14 de março de 2011

Especular

Lílian andava aflita, a algumas semanas só ia ao banheiro de luz apagada, já não ia à praia, mal abria e já fechava rapidamente a porta central do seu armário no quarto. Só se permitia ver-se em espelho depois de completamente vestida. Passava horas, na volta do trabalho, assistindo a documentários sobre moda, cirurgia plástica, medições de gordura, aspiradores de vísceras, narizes novos, botox, maquiagens, vestidos, passarelas.

Não suportava a própria imagem. Sentia que envelhecia e isso era um fantasma a sussurar gargalhadas mórbidas no seu ouvido, diariamente. Aquela sombra, aquilo que seguia por trás de cada passo seu, lhe deformava o espírito e a mente, na presença viva e inapreensível da velhice em que se tornava, a cada dia. Era uma batalha inglória, sem vitória. Parecia-lhe que chegara ao meio dia da própria vida, onde sua sombra, sua parte negra, pútrida e ressequida lenvantaria do próprio chão para abraçá-la. Sentia que a partir dali caminharia em direção à própria sombra, ao pior de si mesma. Perdia-se em amaldiçoar a luz do passado, temia a inevitável e óbvia negritude do futuro.

Não suportava o próprio corpo. Sentia que sua pele perdia a tez que apresentava nas antigas fotos e essa sensação era como uma pedra sobre sua cabeça. Em verdade o tempo lhe parecia uma tonelada de pequenas rochas presas a cada parte de seu corpo, esgarçando diariamente sua pele, arrebentando cada fio de seu cabelo, enquanto andava. Começara a sentir fortes dores nos pés, em consequência do peso que sua culpa suportava. Não deixou de usar seus saltos, mas saía sempre menos de casa. Não importava o que dissessem amigos, família, colegas, ela sabia que já não era aceitável, amável, desejável.

Então correu a comprar papéis de parede, com os quais murou os espelhos da sala e do quarto. Deixou apenas o do banheiro. Onde a luz vinha sempre de fora sendo vaga ou nenhuma. 

Márcio, ao voltar de viagem, encontrou no chão do banheiro um pacote ósseo de cabelos ruivos, embalado por um robe preto. Aos 20 anos enterrou a mãe, de 37.

Conto e  Receita: Renato Kress

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Vinho, sexo, chocolate

Foi uma tarde maravilhosa de sábado. Acordaram às onze, tomaram um café forte, começaram a ligar para a irmã dele. Precisavam saber a hora e como chegar ao tal japonês no centro da cidade, perto da praça XV. Ele não esperava a noite de fim que teve. Ela não esperava a noite da verdade que teve.

O japonês foi maravilhoso, sorrisos, comentários engraçados, fotos, muitos abraços e afagos. Ela recebia os mil beijos que ele sempre dava, nas bochechas, na boca, na ponta do nariz. Ele sempre foi carinho. Ela sempre retribuiu à altura. Ela olhos verdazuis como ele dizia. Ele olhos brilhando para os dela, sempre. Casal perfeito, companhia perfeita, tarde perfeita.

A tarde ela dormia estirada sobre a cama de um amigo dele. Também sobre a cama ele e o amigo inauguravam o novo playstation três. Ela não reclamou um segundo, dormiu profundamente. Acenos e abraços depois, foram a um bar, comer uma salada e um crepe. Antes do meio da salada ela perguntou o que havia de errado. Ele desconversou, fez carinho sobre as bochechas dela, comentou sobre os lindos olhos verdazuis. Duas garfadas depois ela reincidiu, cravando o olhar nos dele. Não havia fuga ali, e ele sabia, o azul virou marinho e o verde musgo, o cenho dela enegreceu como se nuvens cobrissem o céu azul nublando a atmosfera sobre aqueles olhos. Ele disse: Estou apaixonado.

Ela mordeu os lábios, pequenos lábios rosados, lindos, e disse: Quem é ela?
Ele largou o garfo: Você não conhece.
As pequenas mãos dela pressionaram o guardanapo que deveria ser ali o substituto do coração apertado dela. Os olhos se fecharam por alguns segundos infinitos: Quando foi isso?
Ele fugiu o olhar, relaxou os ombros: Antes de nos conhecermos.
Ela olhou fixamente para ele, olhos negros: Vocês tiveram alguma coisa?
Ele encarou como pôde, num misto de coragem e pena: Nunca.

Ela se foi.

Na mesma noite ele ligou para outra menina, caso antigo, disse: traga vinho... tenho... chocolates.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Duplo

Seria bom poder ser objetiva. Ter foco, uma visão recortada e centrada da realidade. Perceber um pouco de nitidez num universo que me parece tão mutável quanto turvo. Gosto quando recorto a realidade porque me parece que exerço uma leitura específica sobre o mundo, minha leitura. É um exercício de poder, nunca neguei. Talvez por isso mesmo eu tenha decidido ser fotógrafa.

Quando falamos pelo telefone, eu e ela, algo ímpar transformou aquela quinta-feira. Algo no tom despreocupado ou no sotaque carregado daquela menina francesa me inspirou uma oitava acima da vida cotidiana. Fiquei inquieta e apressada, algo na atmosfera simplesmente mudou e não saber exatamente o quê realmente me inquietou. Demais.

Da minha experiência desse trabalho, só o que posso te dizer é que foi a coisa mais bizarra que já presenciei. A garota é francesa e meu pai nunca esteve na frança, então, a princípio, risco zero. Claro que a mãe dela poderia ter vindo para o Brasil, mas... risco zero, por favor! Devo estar ficando louca! Além do mais ela tem idade pra ser minha filha e ela é literalmente a minha fuça! Fosse só isso, ótimo, mas todos os presentes se impressionaram: a postura, o jeito de falar, de andar, a aparência... Ouvi comentários suficientes da equipe e não quis dizer nada mais, mas ela tinha o jeito de vestir de quando eu tinha a idade dela!

A sensação que tive foi a de me ver no espelho vinte anos mais jovem mas com o olhar vinte anos mais treinado que tenho hoje. Muito estranha a sensação. Enquanto não coloquei a mão nela, não me convenci de que não era um holograma! Viagem no tempo total, só que estando presente, por trás da lente!

Conversamos sim, mas como ela não viveu o que eu vivi até aqui, creio que não tenha tido o mesmo impacto, embora tenha flagrado o olhar dela meio perdido em mim algumas vezes. Talvez alguma projeção, não sei. Muito, extremamente estranho. O jeito de falar é igual, não a entonação, não tenho sotaque, mas as pausas, o movimento dos olhos e a brincadeira com os lábios, ela morde quando não tem certeza do que vai dizer. Sei que faço isso. Mas definitivamente é outra experiência de vida. Os assuntos, as abordagens, a profundidade, isso tudo é diferente de quando eu tinha a idade dela. Eu era mais nervosa com a vida, mais insatisfeita, mais afoita, menos tranquila do que ela. Eu tinha a incerteza de um caminho, o que me pareceu que ela não tem.

É. Talvez você tenha razão e ela esteja carregada dessa certeza juvenil que o Renato Russo fala, mas não sinto que seja só isso. Ela me pareceu mais pacífica, mais serena, até mais velha, no olhar. Isso me assustou mais do que tudo. Suei a ponto de reclamar do calor dentro do estúdio com ar ligado e tremi de frio quando fotografamos ao ar livre. Eram trinta e oito graus no termômetro da rua.

Sim. Definitivamente sim. Era inevitável que ela percebesse nossa sinonímia. Não reagiu com nenhuma surpresa ao nos encontrarmos, mas com certa curiosidade, sim. Nem melhor, nem pior. Parecia me analisar, mas não entrei por essa senda. Para mim foi o me ver e não me reconhecer em fração de segundos.

Uma coisa engraçada é que eu colo no modelo o tempo todo. Se vai ao banheiro vou atrás, se sai, saio também e assim vai. Uma hora, na make, eu a fotografava pelo espelho e tive a nítida sensação de auto-retrato!

Uma das fotos que tirei dela foi sobre a murada da Urca, com um vestido vermelho, cabeça entre os joelhos, olhando o mar. Tenho muitas fotos minhas em casa, muitas, óbvio. Impossível lembrar todas. Essa, da mureta da Urca, vestido vermelho, cabeça entre os joelhos, exatamente essa, minha mãe me colocou nas mãos assim que cheguei em casa, havia caído e trincado o vidro.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Menires

Então ele veio e sentou-se sob a luz da fogueira. Completou a formação ao redor e olhou fixamente a todos os presentes, da esquerda à direita, fechando o círculo com um aceno de cabeça e um sorriso enigmático. Agora ele sabia, era um deles. 

Treze luas
Desde treze luas atrás Lilkt'tak estava em preparação. Com mais oito jovens de seu clã, Lilkt'tak comia e bebia diariamente comidas separadas, ouvia a tambores rituais, dançava ao nascer do sol e fazia preces da época do avô de seu avô às estrelas antes de dormir. A cada sol um novo parágrafo era incluído às preces, a cada sol um novo mistério se revelava a seus ouvidos atentos, à memória coletiva daquele pequeno grupo. Se todos os dias batalhas eram travadas entre seus nove membros, todas as tardes suas testas se colavam em círculo prometendo fidelidade e companheirismo, honra à grande deusa mãe e seu consorte. Honra à terra, honra ao gado, honra aos chifres e aos ventres do clã. Em troca seus sentidos eram aguçados, suas habilidades melhoravam dia a dia e os ferimentos sofridos já não eram mais sentidos, sua carne se tornara forte, como seu espírito.

Sete luas
Sete luas atrás Lilkt'tak foi surpreendido em seu sono por Gion'ktat, pai de Tript'nak, dominado pelo espírito do urso. Estava sob o manto branco de Awntrat'ki, o grande urso morto pelo Guerreiro-deus ancestral, o fundador. Acordado com força com um chute Lilkt'tak pôs-se de pé o mais rápido que pôde somente para agachar em posição de combate e mostrar os dentes e as palmas das mãos para o outro guerreiro. Toda a cena parecia preenchida por um silêncio assassino. O máximo que ouvidos atentos perceberiam seria as folhas secas sob os pés dos dois guerreiros. O combate ritual teve início e não foi sem dificuldade que nosso herói, já com as têmporas ensanguentadas, executou o pulo que o fundador teria dado por sobre o grande urso, cravando seus dedos ágeis sobre as órbitas oculares da pele que recobria Gion'ktat e arrancando-a por trás do velho guerreiro. Foi quando este último pareceu sair do transe e ajoelhar-se perante o rapaz atônito. Disse-lhe que retornaria na próxima lua.

Seis luas
Na sexta lua Gion'ktat acordou Lilkt'tak com estocadas de um bastão em frente à casa cerimonial onde os rapazes dormiam. Agachou e desenhou, à sua frente, um mapa na terra. Então correu. O jovem levantou ávido por seguir o velho guerreiro mata adentro até a pedreira. Enquanto corria percebia vultos ao seu redor, por entre as árvores, também correndo. Passaram-se quatro quilômetros até que ele pôde perceber uma clareira, após um declive anguloso. Nessa clareira estavam tochas, muitas tochas que ladeavam a entrada de uma caverna. Estancando sua corrida em frente a esse cenário os ouvidos de Lilkt'tak surpreenderam-se ao percebê-lo cercado pelas negras sombras cuja presença ele já adivinhara. Todos seus colegas, todos seus irmãos. Colocaram-se em roda e levantaram suas mãos direitas sobre o peito de seu vizinho, fazendo um círculo fechado onde executaram a respiração ritual inspirando e expirando o mais forte e rápido que pudessem. Então seus espíritos eram os mesmos, sua alma apenas uma. Nesse momento entraram, um atrás do outro, no ventre da grande deusa, a caverna de pedras sob o declive.

Quatro luas
As juntas do ombro direito de Lilkt'tak pareciam querer rasgar como folhas secas, seus joelhos doíam como se fossem ser esmagados, a palma de sua mão esquerda era aberta lentamente pela corda trançada que circundava o Menir levado por aqueles nove rapazes a se tornarem homens. Era imprescindível que ele só tocasse o chão no espaço santificado pelas nove meninas a eles prometidas e que então fosse enterrado com seu cume em direção aos céus, de onde viriam os espíritos dos antigos ter com eles. Foi um dia duro. O grande herói foi Tript'nak, que caminhou por vinte metros com o pé vazado por uma pedra afiada. O eixo entre eles, a Mãe e o Pai foi colocado sobre o espaço sagrado. À noite, sem poder sair de dentro da sua casa comunitária, ouviram finalmente as vozes de suas prometidas, seus hinos em honra de sua glória, o canto sobre seus amores futuros. Para Lilkt'tak essa foi a melhor das noites. Acredita mesmo que talvez tenha sonhado com a Grande Dama branca...

Uma lua
A uma lua Lilkt'tak prostrou-se sob o Menir e esperou. Esperou por uma tarde inteira pela alma do Grande Deus ou da Grande Deusa, que pousaria sobre o Menir e lhe traria o presságio, indicando que as provas haviam terminado. Por três sóis ele esperou e antes que aquela lua houvesse fugido, numa noite silenciosa um piado oco ouviu-se sobre o Menir. Era a Grande Deusa, na forma de uma coruja negra, a olhá-lo atentamente. Os lábios de Lilkt'tak abriram-se e águas nasceram entre suas orelhas. Ao finalmente poder circular a pedra, encontrou Kilk'nan, sua esposa.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Vida Láctea

"Mas quando estamos sozinhos e é noite e a escuridão e o silêncio são tão densos que não escutamos e não vemos nada a não ser os pensamentos que somam e subtraem os anos, e a longa série daqueles fatos desagradáveis que impedosamente nos mostram até onde os ponteiros do relógio já chegaram, e a aproximação lenta e irresistível do muro de trevas que finalmente tragarão tudo o que eu amo, desejo, possuo, espero e procuro, então toda a nossa sabedoria se vida se esgueirará para um esconderijo impossível de descobrir, e o medo envolverá o insone como um cobertor sufocante." - C.G.Jung, A Alma e a Morte

Querida Bruna,
te escrevo essa carta como quem perde um filho. A esperança é sempre algo cujo próprio nascimento engloba uma dor inenarrável, porque é um trabalho contra a natureza, depois de tanto tempo ainda esperar algo, ainda crer. Crença é algo que, com o tempo, aprendemos ser o verdadeiro motor do mundo. Para além do fantasioso "amor", quando realmente olhamos as engrenagens da vida, as duras e arenosas engrenagens do cotidiano, percebemos que mais que o idílio pueril de um poeta inglês, quem realmente move todo esse teatro de atos, insistências e aparências não é o surreal e platinado cupido, mas a dura e sutil imagem da crença. Você viveu teus anos e se tornou o que é porque acreditou que poderia sê-lo, não por amor ou ódio a essa imagem de si mesma.

O tempo passa. É ridículo da tua parte se preocupar com isso, acredite. Não serás nunca mais jovem do que és agora, então relaxe e siga. Não pense que me agrada parar minhas atividades para te escrever isso. É realmente um incômodo ter de sentar à beira dessa janela para lidar com esse aparelho dos infernos, sequer gostei quando criaram a tal "máquina de escrever", mas agora já não posso confiar em nenhuma instituição, muito menos os correios, então prefiro lidar com esse pequenino demônio de luzes e ter ao menos a possibilidade de ter uma cópia do que lhe escrevo. Quero te dizer que tens negligenciado teu silêncio e isso é burrice. Quando negligenciamos demais qualquer parte de nossa vida ela tende a explodir em outro lugar, como uma supernova vira um buraco negro, provavelmente.

Talvez morar em uma cidade como a tua tenha te feito ficar assim. Não sei. Creio que deva estar se perguntando como sei de tudo isso e como percebo daqui a hiperatividade da tua mente. Ora, vivemos numa família de mulheres, palavras são ar em propulsão e as glotes reverberam como pássaros canoros por aqui também, minha cara. Tua mãe anda radiante das tuas mil atividades. Tua avó fantasia tudo maravilhoso, futuros gloriosos, prêmios, vantagens, salários. Eu? Eu devo ser o velho rabugento, o crítico, o indesejável purgante familiar cuja morte provavelmente agora parecerá um desamarrar dos nós que entravam o fluxo da vida. Mas essa é a tua imagem de agora e eu não a culpo se jogar essa carta de lado e presentear o vento com um palavrão. Sei que às vezes sou irritante contigo e com Clara, a diferença é que, com a idade, percebo a importância de ser como sou. Todo sistema precisa de um contrapeso, minha cara. Nessa familia irritante de otimistas convictos, restou a mim ser a segunda viga. 

Pergunto-me se, em meio a um mestrado, um emprego, uma pós, um curso de idioma, uma aula de pintura, uma aula de dança e um namoro é sensato viajar para onde seja para fazer o que for. Talvez eu esteja louco mas aqui como aí a rotação da terra só permite que vivamos vinte e quatro horas diárias, dentre as quais é necessário satisfazer as necessidades do corpo. Duvido que consiga ter para todas essas atividades mais do que dezesseis a dezoito horas diárias. Claro que todas essas coisas são possíveis, cada uma a seu tempo. Parabenizo tua disciplina por consegui-las, sem dúvida, mas é possível, nesse turbilhão insano de atividades, ter teu tempo? Está correndo em direção a algo ou fugindo do que corre dentro de você? E se for o segundo caso, do que está fugindo, menina? É sensata e necessária essa fuga? 

Desculpe teu velho avô a lhe perturbar a consciência com essas idiotices, mas não vejo você tendo tempo a perceber a si mesma, de forma que me cabe esse irritante trabalhinho familiar. Como disse, escrever essa carta não me é prazeroso, gostaria de estar passeando com Aramis no quintal, levá-lo para evacuar no jardim da senhora histérica que grita ao telefone é bem mais divertido que te educar para a vida via "word" e impressora. 

Simplesmente não pude deixar de observar que boa parte da tua juventude está sendo desperdiçada por falta de cuidado consigo mesma. Se a toda manhã estudas, se em todas as tardes trabalha e se a todas as noites tens atividades "educativas" e aulas e cursos e festas e saídas e conversas, quando te sobra tempo para organizar a si mesma? Você tem levado a vida ou ela tem te levado? Quem está no leme do navio, menina? Quantos anos está com esse rapaz, o Estévão? Desculpe-me ou não, mas tenho que dizer que aqui em casa, no natal, vocês tinham o mesmo fogo da paixão que eu tenho pelo Aramis. Aliás não me surpreenderia se na hora de ir embora você mandasse ele sentar, rolar, deitar, e o rapaz obedecesse abanando o rabo! Tive a nítida impressão de que antes de ele se aproximar com o rabo entre as pernas para me cumprimentar você disse a ele "dá a patinha pro vô, amor".

Já que não pareces ter tempo de refletir por si mesma, embora inteligência te sobre, talvez essas linhas possam te ajudar a superar esse claro receio com que se joga à vida. Tens receio de si mesma. Não tenha, é idiota. Não precisa disso. Não estou planejando morrer por enquanto e, dependendo do teu grau de maturidade no momento, você vai achar isso ótimo ou péssimo. A forma como lida com teus problemas é problema seu, você sequer tem obrigação de ler isso até o final, mas enquanto eu estiver aqui vou te presentear com um pouquinho de incerteza e irritação, pra dar ignição em processos novos na tua vida, porque você ainda tem tempo disso. No final acho que estava errado no começo, quando escrevi porque a esperança morreu, escrevo porque dói quere-la ver nascer de novo. Mas só para que me odeie um pouco mais te digo: se eu posso errar e admitir, o que me diz de você?

Sou mesmo irritante, não?
Te amo, eu acho.
Vovô.


Conto e receita: Renato Kress

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Elenco de apoio

- Essas noites sem lua me perturbam.
A frase cortou o ar pesado do verão como uma katana divide em dois um bambu entre aqueles trinta e poucos centímetros que separavam, na varanda da festa de Rodrigo, Eleonora e Jânio. Os olhos dele percorreram os céus negros como se fosse possível, ao encontrar a lua, pedir aos lábios dela um sorriso como resgate. Nada.

- Dizem que a lua tem algo com sentimentos. O que você acha?
A segunda frase dela veio ainda com os olhos perdidos no infinito constelado, sem mover os olhos ou qualquer parte do corpo em qualquer direção. Os pulmões de Jânio estavam num impasse: o ar entrava prenunciando a sílaba que deveria sair e se retardava submersa em meias palavras que não se completavam e embaralhavam na língua inquieta e morta. Ela era linda demais...

- Linda...
- Como?
- Awn... 
- Você disse "linda".
Os olhos dele fugiram dos dela e procuraram em qualquer estrela a palavra certa, a idéia certa. Cerrou os punhos pesadamente somente para rezar para si mesmo que ela não tivesse percebido que sua nuca estava suando. A palavra, a idéia...
- Linda, a noite está linda mesmo sem lua. Não acha?

Os quadris de Eleonora quedaram-se para a beirada da varanda e levaram seus olhos negros a se perder novamente no véu da abóbada celeste. Se ele estivesse frente a frente com ela poderia jurar que um sorriso resignado lhe serpenteou os lábios antes da boca se abrir.
- Uma noite sem lua é como uma lista telefônica.
- Como é?
- Uma lista telefônica, sabe? Muitos personagens, nenhum protagonista.

- Entendo. E é preciso que haja um protagonista? Para a noite?
Seus ombros relaxaram quase trezentos quilos cada um por haver acreditado que finalmente ele estava acertando as palavras, essa espécie de leprechauns brincalhões que sempre lhe desapareciam quando mais precisava. Palavras em fuga eram constantes em Jânio, assim como a apreensão que o invadia nessas situações. Algumas vezes sentia como se estivesse efetivamente esmagando o próprio crânio em busca do termo certo, o que fazia com que raramente ele saísse no tempo certo, mas isso já é outra questão.

- A vida deve ter um protagonista, não?
- Cada qual o seu, creio que sim, mas...
- Então a noite também deve ter seu protagonista.
Ele queria pedir a ela que brilhasse no lugar da lua, que simplesmente sorrisse e estaria feita a luz necessária para iluminar a noite dele. Tudo isso parecia igualmente lindo como brega para Jânio, que sentiu repentinamente sua boca se avolumar como um tsunami de leprechauns brincalhões, impedindo as palavras de se formarem e virem à luz.

Jânio pigarreou bem alto, como se quisesse que todos aqueles malditos anões bucais entendessem quem é que mandava ali. Pigarreou de novo - o que soou meio estranho e seco, mas já era tarde para consertar e inspirou profundamente antes de partir para o tudo ou nada:
- Está com calor?
- Sim, mas...
- O sol cansa. O calor cansa. O excesso da presença do sol, essa presença que se esgueira em vapor quente subindo do asfalto até altas horas da noite, cansam. Minha pele está quente, a tua também deve estar. Estou na varanda esperando uma brisa que não acontece, ou quando acontece vem quente. O protagonismo excessivo cansa. O sol anda muito expansivo ultimamente. Talvez por isso a lua tenha se retraído. Vai saber.

Eleonora sorriu e sua cintura torneou-se levemente para a esquerda, lado onde a pulsação de Jânio provocava um terremoto arterial e fazia suas mãos começarem a suar. As esferas negras por trás das pálpebras dela desceram até a portaria do prédio, enquanto seu umbigo formava um ângulo de cento e oitenta graus com o umbigo de Jânio...
- Vamos descer para procurar a lua?

Conto e receita: Renato Kress

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Cidade Proibida

"No man is an Island,
entire of itself;
every man is a piece of
the continent, a part of the main”
- John Donne


Era uma cor que se plasmava na mente dele. Ali, na casa de tintas, ele olhava a cor que queria para a sua parede. E era novo ter uma parede, como era novo ter um teto e chão. Ele estava ali, absorto, ampliando como um longo mural uma por uma das cores que apareciam na paleta entre seus dedos. Seus ouvidos ignoravam a moda da cor tal ou qual que saía em cachoeira de palavras da boca tensa do vendedor. Na sua mente mil paredes se expandiam e estampavam em verde limão, vinho oriental, laranja cítrico, azul petróleo. Cada uma era um espectro de humores sob os quais ele passaria muitos anos de sua vida, e era importante que essas cores significassem para ele. Como escolher uma cor para toda a vida? Como escolher um humor para toda a vida?

Quando mais novo pensava sobre as vantagens da temperatura do sangue. Um sangue frio impunha maior autocontrole, vingança, palavras monotônicas, volumes cadenciados, afetos controlados por um relógio de corda, sangue quente vazava pelos atos, esbarrava pelas mesas, tropeçava garras pelos pescoços alheios, ampliava o espectro vocal, inflava o peito. Cada qual representava um caráter que era necessário escolher para representar até ser, pelo resto dos dias. E agora, sangue escolhido, que ritmo cardíaco queria naquela parede?

A sala era um quarto de um conjugado dividido pelo sofá-cama de costas para a janela. Um conjugado com duas paredes contíguas. Um lado era recheado de portas embutidas de armários, uma das quais era a porta do banheiro, o outro era simplesmente a parede. Os outros lados paralelos do quadrado eram a janela e a porta da casa que dividia espaço com a cozinha americana e a entrada para uma área de serviço. Claramente só havia uma parede e ele estava decidido a não tê-la branca ou verde hospital (não havia boas lembranças de hospitais). Foi o que o levou à casa de tintas e agora o levava ao vermelho "cidade proibida", inspirado nas cores da famosa cidadela chinesa.

Aquela parede o acompanhou pelos três anos em que morou naquele primeiro conjugado. Alguns meses foram o suficiente para que ele comprasse um adesivo de parede marfim com o símbolo chinês da longa vida e colocasse bem ao centro, dividindo o semi-quarto da semi-sala. Ele nunca percebeu claramente - colocava a culpa no tempo, na hora, nas circunstâncias -, mas a proibição da cidadela chinesa lançou-lhe um feitiço peculiar: visitava todos os amigos, era comum em festas e churrascos, foi a inúmeros cinemas e motéis, mas nunca recebeu visita.

No fim do terceiro ano voltou à casa de tintas. Recebera um novo cargo na empresa com o qual pagou a primeira prestação do seu novo apartamento, agora com uma nova parede entre o quarto e a sala. Aquela parede areia, que ficou com uma marca do café que derrubaram no open-house. Nenhuma parede foi para sempre.

Conto e receita: Renato Kress

domingo, 9 de janeiro de 2011

Fadas

E seus ombros encontraram a cama, e os cotovelos empurraram dedos que se entremearam sob o travesseiro desaparecendo sob o mini útero macio entre a fronha e a cabeça, e ele já era completamente outro. Ele era uma massa indiferenciada de saudades e desejos, ele era ela e era ele e era também as cores frágeis daquele dia que fugia enquanto ele se perguntava se já havia se sentido assim antes. Aquela noite ele havia transcendido toda a possibilidade de sanidade, mordia os lábios e inspirava profundamente, tanto que seu tórax parecia se rasgar por dentro. Queria ainda resgatar o cheiro do cheiro dela por entre as roupas de cama, suas coxas ainda procuravam a tez da nudez dela enquanto as horas, pequenas deusas do destino, lhe volitavam ao redor da face. Ele sabia disso porque quando criança seu irmão lhe havia dito que se pressionasse bem forte as pálpebras antes de dormir veria alguns chapiscados luminosos na borda dos olhos e eles eram as horas. Algumas culturas chamam de fadas, porque elas regiam o fatum, o destino humano. Eram a divisão, a ponte e o selo entre este mundo e o outro. Ele já havia, visto, à noite, uma delas viajar disfarçada sob o peito de um cisne e acampando, um dos olhos percebeu qualquer risada infantil cuja manhã lhe trouxe uma maçã redonda, vermelha, perfeita. Ele sabia. Seu relacionamento com fadas era já de alguma intimidade, talvez justamente porque nunca lhes tenha pedido nada, um favor, um segredo (e uma de suas brincadeiras preferidas é esconder-se atrás da orelha de quem recebe o segredo – dizem ser por isso que muitos escapam para várias outras orelhas e talvez por isso também sinta-se, em português, aquela incômoda “pulga” atrás da orelha quando temos premonições), nada. Ele sabia que elas concederiam, apenas para poderem sumir transcendendo facilmente as contingências das três dimensões, brincando através do espaço para brincar ao tempo e voltarem, talvez, a seu berço, na infância, quando seu irmão lhe disse pela primeira vez sobre fechar bem, muito bem, os olhos. Ele não pediria conselho ou segredo, ele não as queria desaparecidas. Elas agora piscavam com força ao redor dele como um pequeno réveillon visto pelos infinitos periféricos do olhar. Ele mergulhou no infinito das fronhas e lençóis. As bocas, da face e do estômago, se pressionaram como os olhos e ele começou a acreditar que a ausência dela, tão presente ali naquele ventre de tecidos, espuma e carne, lhe trazia também água na boca e borboletas no estômago.

Renato Kress

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