quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ocípite



O frio cortante passava por entre as frestas dos tecidos, arestas das construções e sussurrava imprecações aos ouvidos das mulheres casadas. Era um toque de recolher mudo que dançava uma coreografia tímida no consenso programado entre as nove horas, o toque dos sinos e o rangir das molas das camas dos habitantes daquele vilarejo.

Naquela noite os cachos castanhos sobre a cabeça dela tocaram o travesseiro felizes. Entre seus dedos, à luz da lamparina a óleo que tremeluzia um fraco brilho no chão, estava a razão do sorriso incomum sobre as maçãs do belo rosto camponês: uma moeda de prata grossa, incompatível com os dedos frágeis de uma menina de quatorze anos. Aquela moeda era motivo para que toda a felicidade do mundo valseasse a seus olhos verdes, para que ela lutasse bravamente, com o braço esquerdo estendido para fora da cama, contra o sono que lhe insistia em não carregar consigo o brilho amarelado da lamparina refletido no objeto entre seus dedos. Ele havia dito que voltaria para pegar aquela moeda, aquele brilhante mundo circular entre frágeis dedos.

No trepidante das pálpebras entre o sono e a vigília, o peso do primeiro estirou aquelas falanges delicadas, sugando a força de seu pulso que, surpreso, travou-se de imediato enquanto os olhos brilhavam de susto! Era o som metálico sobre as tábuas de madeira, a moeda que batia e rolava pela fresta da porta! Ela levantou de um susto numa tensão que prenunciava o medo.

Caiu sobre as tábuas escorrendo os finos dedos num tatear cego, vítima de uma lâmpada que parecia brincar com seu desencanto crescente. Sem a moeda talvez ele não voltasse! Foi quando seu pulso, em pânico, esbarrou no frio metálico e reiniciou o som da moeda que se perdia em direção às frestas frias da porta. E vazou.

Sua mão esquerda correu para trás em busca da lamparina bruxuleante enquanto a palma direita travou-se de frio e tensão sobre a maçaneta à sua frente. A falta da esperança, que crescia na ausência da moeda, era maior que o receio das histórias sobre a Senhora da Noite. A moeda estaria do outro lado, caída, ela pegaria e voltaria a dormir, tendo o cuidado de esconder bem dentro da fronha aquele talismã dele.

Abriu a porta de um susto e nada mais pôde ouvir que cascos longínquos de cavalos e o sussurrar irritante do vento sobre as árvores secas de uma noite sem lua. Agachou-se na soleira com a lamparina em frente ao rosto, vasculhou o que pôde da varanda, das duas cadeiras, das reentrâncias daquele chão de veios. Nada.

Teve a leve impressão de um brilho no mato, a poucos metros à frente da casa, entre a porta e os álamos brancos. Os cavalos, por algum motivo, estavam parecendo mais próximos, mas haveria de ser o vento... e só o vento. O vento trazendo também o som dos arfados dos cães do vizinho e os cavalos, mais próximos. Não que ela lembrasse de que os vizinhos tivessem cães, mas talvez um cão perdido, ou só o vento. Os apelos do vento foram ignorados, mesmo quando apagou a frágil lamparina. Mirou o ponto onde o brilho cresceu na relva e correu às trevas. Tropeçou. Talvez um galho, talvez uma pedra ou um buraco, tropeçou.

Seu coração lha lembrou, de sobressalto, o galope desenfreado dos cavalos ensurdecendo sua alma quando as sombras da noite se abriam numa carruagem de prata atada a corcéis de um negro azulado que, seguindo o crescer veloz do vento e trazendo um frio de outro plano, circundaram ela antes de parar, à sua frente. Se ouvia o uivo de cachorros e lobos e alguma gravitação natural das pernas a puxava, força qualquer cada vez mais frágil, para dentro de casa. A forma lunar da carruagem lhe chamou a atenção - mais que os olhos de bruma azul dos corcéis - eram ferragens trabalhadas como ela jamais havia visto nos seus mais insanos devaneios, e brilhavam como se tivessem pequenas linhas de pura luz correndo por seus ângulos circulares.

Ela estava entre o desespero, o pânico e o fascínio quando percebeu a falta do som dos cães, exato momento em que a porta lateral começou a escorrer descendo a bruma azul ao nível do solo. Dois novos olhos. Duas lanternas de um azul sobrenatural preenchiam o ar com o perfume de mil damas da noite, quando seus negros cabelos delineavam o contorno alvo de seu colo e a figura em suas unhas azul marinho sorria maliciosamente para a menina no chão. Para a menina, ela era a mais linda das lindas, o segredo da noite. A cada passo para fora da carruagem, por detrás de seus calcanhares altos, surgiam dois cães à direita ou dois lobos à esquerda, presas à mostra, olhar fixo nos seios da menina.

Pares de presas de um dos lobos se adiantaram aos joelhos da menina, numa velocidade tal que chegaram e voltaram movendo mais o vento que os reflexos possíveis. Balançando o rabo ele voltou para lamber a mão daquela mulher incrível, que abriu um sorriso - e bem poderia ter presas de pérola - e estendeu à menina a mão esquerda com a moeda de prata, e com a direita lhe apontou o interior da carruagem.

Mil espectros, súcubos e íncubos seguiam, como ondas de um cinza azulado, por trás da carruagem. Cada um deles, em sua língua, ajoelhados, com suas mandíbulas arqueadas e formas tremeluzentes, pareciam suplicar que a menina fosse embora, que esquecesse moeda e carro, que fosse, que fosse...

Foi quando à porta de sua casa, o grito de sua mãe despertou seu avô, enquanto via seu vestido branco mergulhar na noite, no exato ponto onde, na manhã seguinte, encontraram uma estranha moeda, grossa, de prata.

Conto e receita: Renato Kress



Ocípite é o nome da segunda Harpia - mulher alada ou ave com cabeça feminina que raptavam as crianças e as almas - seu nome significava "vôo rápido". Viviam nas "ilhas do fim do mundo" e perseguiam os mortais, roubando-lhes alimento ou sujando tudo com seus excrementos. Suas outras duas irmãs se chamavam Aelo e Celeno e significavam "Tempestade" e "Obscuridade".

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