segunda-feira, 25 de março de 2013

A máquina

- Então é assim que tudo funciona por aqui, Fernanda.
- ..."tudo?" como assim "tudo"? Eu acabei de chegar, não sei sequer o seu nome... Espera aí, que lugar é esse?
- Prazer, Deus. Esse é o lugar onde fabricamos as mentiras. Todas elas. E é preciso não perder tempo. Eu expliquei tudo. Não me interprete mal, mas é isso. Você não estudava ouvindo gravações de aulas enquanto dormia? Te expliquei com você deitada ali, você ouviu. Confia, tá tudo no inconsci...
- Para tudo!
- Não dá. Isso assim não tem como "parar", minha filha. Agora fica aqui com Deus que ele vai...
- Espera! Você me disse que era Deus!
- E sou!
- E agora está apresentando esse outro aí. Ele nem parece Deus!
- E eu pareço?
- Bem, mais que ele, sim!
- Olha - com licença Deus, já te chamo de volta - vamos do começo: você morreu e então estamos aqui. Deus então me pediu para te explicar como funciona esse setor e você dormiu no meio da explicação. Tudo bem, acontece quando a gente chega, ficamos meio moles mesmo. Mas não podemos parar, sabe? Essas mentiras não se criam sozinhas! Você tem que afrouxar os parafusos delas todas, senão duram demais!
- Isso aí é uma mentira?
- É. Como tudo mais aqui.
- Mas se você é Deus...
- Eu e Ele ali e aquele cara lá no alto também...
- E eu?
- Olha, na verdade você também, mas isso vem com o tempo, não precisa se apressar...
- Mas porque temos que ficar aqui fabricando mentiras?
- Na verdade estamos afrouxando verdades...
- ...que seja. Mas por que isso, com que propósito?
- Lembra do Ernani?
- Meu marido.
- Ex-marido. Você morreu, Fernanda.
- Sim, o que tem ele?
- Você amou ele todos os seus dias?
- Claro! Levamos uns 30 anos para nos encontrar e nunca mais estive com nenhum outro homem depois!
- Nunca?
- Claro que não!
- E o Samuel?
- Que Samuel, você está louco? O Samuel foi um namorado de faculdade, isso não faz o menor sentido!
- Nunca transou com o Ernani pensando no Samuel?
- Que mente podre a sua, hein "Deus"!
- Você vai querer mentir para mim?
- ...tá, e daí? Pensei no Samuel sim! Duas ou três vezes!
- Quatrocentas e oito...
- Como assim?
- Fabricamos aqui, sabe? Tá vendo aquele ponto verde saindo daquele tubo azul piscina?
- A-hã.
- É um "Gustavo", mas só na casca, o miolo é "Antônio".
- E por quê se fabricam mentiras no Céu?
- Pensa nos impostos que você pagava, lembra do IPVA? Eu te peço IPVA e você lembra dos buracos na rua. Lembra  nas vezes que a Paulinha e o Felipe te atrasavam para o trabalho brigando ou quando você queria dormir até mais tarde e dizia "tá tudo bem"? Então. Vê aquela cachoeira de bolinhas ali?
- Uau! Que incrível! Como pode algo tão grande? O que é?
- A saída do tudo do "tá tudo bem", é uma das nossas maiores refinarias!
- Tem maior que essa?
- Claro! Várias! Algumas piorando a situação, outras melhorando, depende mesmo do interesse de quem precisa. Aí nós vamos lá e criamos, por isso você está aqui.
- Eu vou criar mais mentiras?
- Sim, temos uma demanda inesgotável! Quando estamos lá do outro lado estamos mergulhados nelas, quando estamos aqui estamos criando elas. É assim que funciona! Você lembra das aulas de física no colégio, de ótica? Sei que lembra. Lembra do fenômeno da "refração total" quando o ângulo da luz incidindo sobre a água vai aumentando até que toda a luz é refletida de volta e não entra mais na água? Então, é isso! "Lá do outro lado" somos peixes! A gente não suporta o ar! Muito ar nos mataria! Pense onde você estaria sem todos esse "tá tudo bem", "eu te amo", "nada não", "sem problema", "eu me lembro sim" e "eu não me importo"...
- Então você está aqui para enganar todo mundo?
- Eu e você! E isso é um trabalho de amor! Onde você estaria sem todas essas engrenagens? Tá vendo aquele "vai ficar tudo bem"? É do Ernani... pra Paulinha...

Conto e Receita: Renato Kress

terça-feira, 19 de março de 2013

Anais das imperatrizes da água

"...
A água, meu Senhor, flui do mais alto para o mais baixo, levando consigo tudo o que não tiver boa estrutura, toda forma solta que esteja insone, despregada de raiz e sem a devida atenção. A água se move em ondas, em filetes e em rios, como a seiva vermelha nas tuas veias, como o sangue verde esbranquiçado dos troncos. Um veio d´água irradia filetes de vida para dentro da terra onde o solo breve proliferará sua pelugem verde onde o Senhor descansará seus cabelos. A água traduz movimento em vida e é necessário honrar o que ela traz, Senhor.


Honrar os presentes da água é honrar aquilo que chega e te acelera as águas internas, aquilo que te flui intenso e ondeia forte nas praias do coração. A água, Senhor, fará de palavras pétalas e de pétalas sílabas e de sílabas contratos e então será preciso honrar os contratos, nutrir a quem te nutre.

Haverá imperatrizes das águas, todas fluidas e lânguidas e lívidas e a corrente que verter elas até você terá de ser alimentada. Há de encontrar-se a nascente desses rios não para controlá-la, mas para preservá-la..."

 - Pedaço do manuscrito tropeçado nos meus pés por uma onda, em um sonho.


Conto por Renato Kress

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