segunda-feira, 11 de abril de 2011

Controle

Pólvora no chão. Pólvora no chão, um estalo às quatro horas da tarde na HochstraBe e aquele a quem substituo está a cinco centímetros das minhas botas. Odeio estar perdido. Um rapaz ruivo de macacão negro está me fazendo perguntas insessantemente e tudo o que me passa pela cabeça é que Rudolph Meinkatz, a quem eu deveria estar levando algemado, virou para trás e riu quando ouviu gritarem meu nome pela Holleralle. Odioso estar perdido.

Kroitzenberg nunca gostou do delegado Appenheit. Foi o primeiro a se aproximar do corpo estendido de lado no meio fio e a retirar dos bolsos os documentos e a carteira do recém falecido delegado de Bremen. Parou à minha frente com os olhos brilhando, esperou que eu estendesse a mão e deu-me seus pertences, incluindo o anel de noivado. Não estivesse ao meu lado na carreira atrás de Meinkatz juraria que aquele sorriso displicente havia disparado contra Appenheit às escondidas. Mas ali a satisfação era genuína e reforçada pelo álibi de que estava a alguns passos atrás do novo delegado quando deu-se o tiro.

Observei a rua. Estava estranhamente impassível como se quem houvesse disparado o tiro fosse algum tipo de força tenebrosa da noite ou espírito ancestral. Pelo horário todos ali haviam visto tudo: quem disparou, de onde, para onde fugiu, qual rota tomou, tudo. Fui ter com Hazzel, diretor do correio que fechava as portas à hora do ocorrido. Seu olhar ao longe via através de mim e quando nos aproximamos ele me confessou que estranhamente não havia visto nada - "Estava de costas, batendo o cadeado, o senhor bem sabe. Tiros não se ouvem na principal, meu bom rapaz. Quando o primeiro estalo correu me agachei. Tenho esposa e duas meninas...".

"Meu bom rapaz" me irritou profundamente. Virei de lado e dei-lhe as costas assim que terminou de falar. Agradeci secamente. Estava mentindo. Fui à florista que trabalhava do lado oposto a Hazzel, Mina Gertrude ela disse se chamar. Todas essas polacas mal nascidas se chamam Gertrude ou Berta perante autoridades. Que seja. Disse-me que vira Appenheit descer o meio fio confiante, sozinho, em seu sobretudo carvão, mas que no momento do estampido, vendia crisântemos a um jovem rapaz e sua acompanhante, de maneira que escondeu-se e nada mais viu. Essa não parecia mentir, ao menos sobre isso. Afinal para que mentir se não acrescentou em nada? Para saber que passava o meio fio basta olhar a posição do corpo, o sobretudo era o de sempre.

Passei a mão da testa ao queixo irritadamente. Olhei ao redor como um caçador alucinado e todos os olhos fugiam de mim. Em vão procurei na esperança de que algum caráter nascesse por entre aqueles olhos escorregadios, aquelas mãos nervosas a varrer, a beber a fingir com agressividade latente que era apenas mais um entardecer na cidade. Mas não era. Acordei sub-delegado e em meio a uma perseguição rotineira antes de voltar para minha Mia com soldo suficiente para nosso casamento terei de passar na casa de Appenheit e falar-lhe à sua senhora e crianças. Não é uma simples tarde. Odeio estar perdido.

Corri sobre um grupo de rapazes de bom nascimento sentados à janela da taverna Grivern. De onde estavam teriam visto a tragédia por um ângulo privilegiado e, visto que estivessem sentados, não poderiam "agachar" ou "se esconder". Peguei-os de sopetão na espectativa de arrancar algo. O de cabelos negros e olhos verdes se adiantou em relatar que justamente àquela hora dois de seus conhecidos, Arendt e Werkampf, estapearam-se no centro da taverna e marcaram à alta voz um duelo para o dia de amanhã, o que chamou a atenção a ponto de estarem todos voltados para o centro da taverna quando do ocorrido. Atalhou que teria enorme prazer em auxiliar "às forças competentes" e que olharam pela janela de imediato ao estouro da pólvora, mas era um horário movimentado "com certeza quem estivesse na rua teria visto muito melhor, delegado....". A vontade de esmagar a traquéia mentirosa daquele menino me pressionou o pulso e foi quando olhei para suas mãos, sobre a mesa, girando um anel de confraria de duelos. As confrarias de duelos são muito comuns por toda Alemanha. Agradeci ao bom Deus por aquele anel. O assassino era um nobre!

Deixei as ruas tranquilo. Não havia o que investigar e ninguém me diria nada. Fui até a delegacia e peguei minhas anotações sobre Meinkatz - assassino de aluguel. Corri até o escritório de Appenheit e notei seu chapéu sobre o cabideiro. Saíra às pressas. Tanto faz. Olhei sua agenda do dia anterior: fechar club Wernhalt, OS. OS, ordens superiores. O Wernhalt era um clube aristocrático de duelistas e esse "ordens superiores" me pareceu muito do que Appenheit vinha me comunicando sorrateiramente sobre desarticular os bem armados nobres e trazer a força para os aparelhos do Estado. Ele desagradou a alguns nobres, mas qual a ponto de levar um tiro? Mandei chamar a Obenwerk, que lhe acompanhou ontem e este me confessou que Appenheit tivera uma ligeira discussão ao fechar o club. Uma discussão com Rudolf Battenberg! Sem perceber cai na cadeira de Appenheit, cabeça baixa, entre os joelhos, Battenberg não só é campeão de tiro em toda Bremen como é parente da casa dos Habsburgo. Óbvio que ninguém falaria nada. Era um crime solucionado e insolúvel.

Eis que meus olhos se levantam e vêem a ficha de Meinkatz. O que é um Meinkatz perto disso? Nada. Nada sobre minha mão esquerda. Sobre minha mão direita a agenda de Appenheit. À minha frente uma fotografia de sua esposa e crianças. Foi quando abri suas gavetas e peguei um bloco, escrevi às pressas duas páginas frente e verso, lacrei eu mesmo o envelope e mandei que Obenwerk entregasse à viúva de Appenheit. A segunda folha foi, com uma nota de cinquenta marcos, enrolada em um envelope velho e comum do nosso almoxarifado. Essa segunda folha foi entregue a Kroitzenberg para que chegasse, por vias tortuosas, aos cuidados de Meinkatz. Com um sorriso nos lábios escrevi a terceira carta à família Battenberg, sem remetente, anunciando que se acautelassem sobre suas vidas. Confesso um certo ar de frenesi ao ver as três cartas saírem de minhas mãos e seguirem seus caminhos.

Três semanas depois das cartas entregues recebi em minha mesa um buquê de flores da senhora Appenheit. Battenberg havia sido alvejado às costas por um assassino de aluguel, que foi preso a caminho do que achava que seria o encontro onde receberia a segunda parte do seu pagamento. Alertei aos Battenbergs na esperança de que alvejassem Meinkatz junto. Sentando à minha nova cadeira olhei para as flores da senhora Appenheit. Meu sorriso me trouxe o controle.

Conto e receita: Renato Kress

segunda-feira, 4 de abril de 2011

SAC*

Pernas atoladas numa piscina sem fim de vermelhos aparelhos telefônicos, tocando simultaneamente, todos, quentes, flamejando seus tornozelos e joelhos, ensurdecendo sua alma. A cintura e o tronco para fora do mar vermelho suportavam o vento congelante num sussurro inquietante. "Alô?", "aguarde um minuto por favor", "estamos transferindo sua ligação para o setor responsável", "não há nada que eu possa fazer, senhor, mais alguma coisa?", "aguarde por gentileza" e mil orquestras tocando simultaneamente músicas lentíssimas enquanto suas mãos percorriam os aparelhos tentando encontrar um equilíbrio entre queimar e congelar. A carne, ardendo em frio, quebrava partes e soltava cacos sobre os telefones vermelhos. O fedor da própria carne queimada trazido pelo vento frio a suas narinas lhe fazia vomitar e eram cabos que lhe escorriam pela boca, congelados e ardentes, simultaneamente.

Fez-se então silêncio naquela paisagem desesperadora e Antônia pôde ouvir um telefone tocando. Eram suas preces sendo ouvidas, com certeza. Mergulhou avidamente, quebrando e trincando partes congeladas de suas costas e rosto atrás do toque do telefone. A dor era tamanha que ela pensou que iria desmaiar, mas não, tinha que atender àquele telefone que parecia cada vez mais perto. Ferveu os músculos das mãos sem pele e liquefez suas orelhas tendando em vão atender aquelas brasas vermelhas. Por o que pensou que fossem horas e horas e o toque do telefone cada vez mais ensurdecedor, as brasas tocando partes dos ossos das articulações dos seus pés quando levantou um aparelho e o toque parou.

- A-Alô!
Do outro lado da linha uma voz suave, delicada, quase angelical disse polida e muito pausadamente:
- Aguarde por favor, um de nossos atendentes irá entrar em contato em breve.

Sua garganta parecia formar pequenas crostas de gelo por dentro e ela não teria forças para dizer palavra alguma quando sentiu que o vento cortante lhe encheu a boca de restos flamejantes de pós de telefones queimados. Vomitou uma tosse qualquer que lhe ardia a espinha.

- Alô!
A voz no telefone era elegante, macia. O som do vento lhe fez grudar o telefone fervente na lateral do rosto, já sem orelha.
- ALÔ! PELO AMOR DE DEUS, PELO AMOR DE DEUS, O QUE ESTÁ ACONTECENDO? ME AJUDA!! ME AJUDA, ME AJUDA!!!
A voz parecia ainda mais doce e delicada e respondeu tranquilamente:
- Com quem a senhora gostaria de falar, por favor?
- ME TIRA DAQUI!!!! PELO AMOR DE DEUS, ME TIRA DAQUI!!! ME TIRA....
E lágrimas começaram a percorrer o rosto de Antônia na forma de pequenos cristais que laceravam suas bochechas congeladas à medida que rolavam entre soluços arenosos congelados.
- EU NÃO AGUENTO MAIS!!!! PELO AMOR DE DEUS ME TIRA DAQUI!!!!
E o gosto de sangue se misturava ao frio insuportável nas paredes de sua boca. E partes do telefone já esfumaçavam partes dos ossos de sua mão quando ela ouviu a voz ao outro lado, lenta, calculada:
- Por favor, fale pausadamente. O que a senhora deseja?

- DEUS!!!!
- No momento Deus está ocupado. A senhora gostaria de pegar uma senha e aguardar ou prefere outro de nossos atendentes?

- O QUÊ É ISSO? PELO AMOR DE DEUS PARA COM ISSO!!!!! ME TIRA DAQUI!!!!
- Entendi. A senha para falar com Deus é 4563402948593920495830-3945123124523. A senhora gostaria de anotar o protocolo dessa ligação?
- AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!! NÃO NÃO NÃO NÃO!!!!!
- Por favor, fale pausadamente. A senhora gostaria de cancelar seu requerimento?
- ME TIRA DAQUI!!! PELO AMOR DE DEUS!!!!! ME TIRA ME TIRA!!!! AHHHHHHHHHHH!!!
- Aguarde um instante, estamos cancelando seu requerimento. - Entra Berceuse de Brams.

Antônia já havia perdido os pés e tornozelos quando a voz voltou. Dois dedos de sua mão esquerda haviam quebrado, caído e começavam a chamuscar em pequenas faíscas.

- Por gentileza, a senhora gostaria de falar com quem?
- CRISTO!!!! CRISTO!!!!
- Entendi: Krishna, Aguarde por favor.

Antônia largou o telefone sobre as brasas e começou a rezar mordendo sua própria carne congelada. Foi quando ouviu a voz do telefone por toda parte, como se viesse de todos os telefones simultaneamente:
- Por favor, não deslige. A sua salvação é muito importante para nós!

Perdeu mais um dedo tateando todos os aparelhos até descobrir um em que pudesse ouvir a voz suave, melíflua:
- O tempo de espera para falar com Krishna é de aproximadamente sete anos. A senhora gostaria de pegar a senha?

- EU NÃO MEREÇO ISSO!!!! DEUS DEUS DEUS!!!!
- Olá. Para nossos registros internos gostaríamos de saber o que a senhora fazia antes de estar aqui. Lembre-se de falar pausadamente.
- ME TIRA DAQUI!!!! ME TIRA DAQUI!!!!! ME TIRA DAQUIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!!!!!!
- Desculpe-me, sem essa informação não podemos prosseguir. A senhora poderia dizer qual a atividade exerce profissionalmente?
- TELEMARKETING!!! EU TRABALHO COM TELEMARKETING!!! PELO AMOR DE DEUS ME AJUDAAAAAAAAAAAA!!!!
- Ah, telemarketing? Aguarde, sua perdição é muito importante para nós.
- COMO? PERDIÇÃO?
- Oh, perdão! "Salvação", a sua "salvação" é que é importante para nós!

Foi quando seu pulso, frágil, quebrou misturando o telefone a todos os demais, vermelhos, flamejantes...
- MAS QUE DIABOS!!!!

- Pois não?

Conto e Receita: Renato Kress

* Serviço de Atendimento do Capeta

Postagens populares