domingo, 28 de julho de 2013

Filiações

- Já percebeu como acontece invertido?

- O que?

- A vida. Esperam que nasçamos filhos e morramos pais. Com sorte avôs. Mas eu tenho que te contar - e eu sei que não vai te surpreender num mundo onde tudo parece estar de cabeça para baixo - que isso não faz muito bem sentido. Na verdade só faz se for invertido. A gente cresce pai e envelhece filho. Cresce pai de idéias, projetos, ações e planos e envelhece filho dos nossos dias, atitudes, posturas e coragens. A gente envelhece e vai se tornando cada vez mais refém das nossas omissões e covardias ou apadrinhado pelos nossos projetos que criam asas embaixo das quais curtimos o inevitável peso do tempo. É preciso criar uma estrutura forte, alicerce robusto ainda que quase sem nenhum peso, afinal, dormiremos nosso mais longo sono abaixo das asas desses dias, talvez essa seja a maior arte da vida, sabe? A intenção daquela palavra enviesada, aquele beijo incerto, a taquicardia ofegante que prenunciou aquela tomada de atitude antes da entrega da sua alma a um novo caminho ou a um novo amor, aquela palavra amarga que terminou uma amizade, aquela distância estranha e intransponível criada entre os que um dia foram íntimos, tudo isso passa. Quando nos damos a esses pensamentos logo fugimos - a mente foge, é a natureza dela - para Shan-gri-lá, para o Éden, Eldorado, Atlântida, acabamos na armadilha aconchegante de idealizar a "toda poderosa" felicidade. Se a felicidade existe? Ela é como um soco na boca do estômago. Ela vem, preenche todo aquele instante, impede que você pense em qualquer outra coisa que não seja ela e depois? Ela passa. A vida é aquilo que passa. O cara que escreveu Don Quixote escreveu que "somos filhos de nossas próprias obras". Que tipo de obra você quer que te cuide na velhice? Precisamos estabelecer marcos, decisões que cavarão passos, tirando pequenas camadas de lama e terra do chão, húmus com os quais ergueremos o casebre ou o palácio de onde veremos que tipo de filhos nos tornamos, que espécie de pais merecemos. Se tivermos sorte cresceremos pais, gerando e criando e espalhando a palavra de nossas vocações, de nossos corações e almas por onde passarmos. Se tivermos sabedoria, até que a matéria de nossas mãos e pés e olhos e bocas se desfaça em átomos que em breve povoarão laranjas, sequóias e turbinas, morreremos filhos dignos dos dias que tivemos. Você acha que se parece com os dias que já teve?

Conto por Renato Kress

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