segunda-feira, 14 de março de 2011

Especular

Lílian andava aflita, a algumas semanas só ia ao banheiro de luz apagada, já não ia à praia, mal abria e já fechava rapidamente a porta central do seu armário no quarto. Só se permitia ver-se em espelho depois de completamente vestida. Passava horas, na volta do trabalho, assistindo a documentários sobre moda, cirurgia plástica, medições de gordura, aspiradores de vísceras, narizes novos, botox, maquiagens, vestidos, passarelas.

Não suportava a própria imagem. Sentia que envelhecia e isso era um fantasma a sussurar gargalhadas mórbidas no seu ouvido, diariamente. Aquela sombra, aquilo que seguia por trás de cada passo seu, lhe deformava o espírito e a mente, na presença viva e inapreensível da velhice em que se tornava, a cada dia. Era uma batalha inglória, sem vitória. Parecia-lhe que chegara ao meio dia da própria vida, onde sua sombra, sua parte negra, pútrida e ressequida lenvantaria do próprio chão para abraçá-la. Sentia que a partir dali caminharia em direção à própria sombra, ao pior de si mesma. Perdia-se em amaldiçoar a luz do passado, temia a inevitável e óbvia negritude do futuro.

Não suportava o próprio corpo. Sentia que sua pele perdia a tez que apresentava nas antigas fotos e essa sensação era como uma pedra sobre sua cabeça. Em verdade o tempo lhe parecia uma tonelada de pequenas rochas presas a cada parte de seu corpo, esgarçando diariamente sua pele, arrebentando cada fio de seu cabelo, enquanto andava. Começara a sentir fortes dores nos pés, em consequência do peso que sua culpa suportava. Não deixou de usar seus saltos, mas saía sempre menos de casa. Não importava o que dissessem amigos, família, colegas, ela sabia que já não era aceitável, amável, desejável.

Então correu a comprar papéis de parede, com os quais murou os espelhos da sala e do quarto. Deixou apenas o do banheiro. Onde a luz vinha sempre de fora sendo vaga ou nenhuma. 

Márcio, ao voltar de viagem, encontrou no chão do banheiro um pacote ósseo de cabelos ruivos, embalado por um robe preto. Aos 20 anos enterrou a mãe, de 37.

Conto e  Receita: Renato Kress

3 comentários:

  1. Que triste...infelizmente tem pessoas que passam mais tempo tentando arrumar o corpo,os cabelos...ao invés de arrumarem o coração...bj no moço lindo!

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  2. Gostei bastante...e no final não chegou onde queria, houve realmente perdas, muito mais do que de quilos, medidas, houve a falta da saúde, da alegria e por fim da vida.

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  3. É uma idade difícil mesmo. Há que se ter habilidade pra lidar com ela... Belo texto...

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