quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Um pouco de "para sempre"


Nossa, sinto uma saudade às vezes de você, sabia? Penso que sou louca. Devo ser. Como pode uma saudade tão boa de algo que talvez nunca tenha existido e nunca voltará - como poderia, não é? E fica aquela lembrança do seu sorriso, carregado de carinho e perversão. Penso que a vida vale a pena por esses detalhes ridículos, tolos, banais. Será? 

Aquele ano novo que passamos juntos na areia, quando transamos no banheiro daquele conjugado, rindo na orelha um do outro para não acordar minha irmã, o namorado dela e mais dois amigos que fingiam que dormiam no quarto. Tenho certeza de que desse dia você se lembra. Difícil vai ser você lembrar daquele dia que pedalamos juntos e conversamos sentados nas mesas de pedra enquanto você ficava pegando sol, me respondendo sem me olhar.

Eu te via o tempo todo, sabe? Mesmo quando você não estava nem aí para mim. Eu sempre te vi. Acho que te via antes de te conhecer. Talvez por isso não te telefone mais. É que você está como sempre esteve antes de estarmos juntos. Você está sempre dentro.

Eu queria não ter tido você para não saber o que é te perder, perder você chegando do supermercado com sacos de macarrão e molho de tomate dizendo que ia cozinhar pra gente, você começando a cortar o tomate para fazer o molho e me pedindo ajuda pra picar o manjericão, depois a cebola e a cenoura e quando via eu já estava mexendo a massa, com tudo cortado e você baixando meu short e beijando minha nuca, ali, na beira do fogão. Acho que você nunca cozinhou nada que eu não terminasse, mas não posso reclamar, você também nunca terminou antes de mim.

Acho que a vida é feita dessas coisas sabe? Percebi outro dia, tropeçando com você na rua, apressado conversando com uma morena muito alta, que não tenho nenhuma foto sua comigo. Não sei se gostaria ou não. O fato é não tenho. Nem para desgostar da foto eu tenho uma. O melhor de tudo é que você se assustou comigo, quando nos cruzamos, e ficou ressabiado, com cara de culpado e sem jeito. Sei que nunca conseguiria dar um ponto final na nossa história, então naquele dia, eu voltando de um café, você indo sei lá para onde com a morena, dei um ponto através dos teus olhos. Você é tão cheio de si, sempre. Ali foi a primeira vez que te vi sem graça. Quando teus olhos me viram eu li que alguma coisa por ali, alguma coisa entre a gente, seria o nosso tal "para sempre".

Conto e Receita: Renato Kress


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Retribuição

Fora a alma de Lucius, todos diziam. A alma de Lucius estava com fome e tragou pelas narinas da carne de Herculano sua alma às sombras do rio dos mortos. Contemos a história do começo. Lucius contraíra matrimônio com Josephina, era primavera do ano de nosso Senhor de 1673 e ela era só sorrisos embalsamada nos bons desejos de todos para com o jovem casal. Dizia-se mesmo que ele recebera de herança uma pequena arca com tesouros de família.

Infelizmente quis o destino que Lucius nunca se recobrasse ao certo de uma gripe que lhe enfraqueceu os pulmões e debilitou as carnes. Faleceu aos 28 anos, deixando a jovem Josephina sob os cuidados de um primo, Herculano. Um estranho vendaval na cidade havia arrancado do quintal dos fundos a cruz de madeira que ela havia deposto em memória do falecido marido. Diz-se que o vendaval ocorreu na noite primeira em que Herculano mudara-se em definitivo para a casa da prima. O fato é que ninguém mais aproximava-se da jovem viúva sequer para um leve aceno de cabeça. A pequena e dócil Josephina tinha agora como sombra os largos ombros e a espessa sobrancelha de Herculano.

Era algo sofrível toda a situação e fermentava um incômodo geral na população. Desses incômodos que geram histórias que se avolumam de boca em boca, como uma pasta de palavras ruminadas que se adensavam nas mentes ativas do povoado. Fato era que nas mentes do povo era agora Josephina amante do primo que talvez houvesse mesmo envenenado as carnes do pobre Lucius no início de tudo. Era o que por lá corria, mas corria como vento matinal que insufla as folhas para em breve pousar-lhes ao chão. Nada grave, mas contínuo.

Isso assim foi-se até o dia em que Bernardo, pároco da pequena igreja do povoado, ouviu à meia noite estranhos barulhos à esquerda do pátio externo. Imaginou galhos quebrados que se batiam contra a terra e as lápides sob o efeito do vento, mas os barulhos não cessavam, eram contínuos, com cadência. Tudo aquilo a mente supersticiosa do pároco ignorou, até o ponto em que tosses fortes, intensas e um grito cortaram a madrugada. Seus joelhos aceleraram até o som, circundando as paredes altas e encontraram Herculano, caído, com a boca no chão, em espasmos. A cova de Lucius aberta.

Com todo conhecimento médico do pároco não houve boa sorte e, após alguns leves novos espasmos e uma forte gofada de um líquido esponjoso, os olhos de Herculano revivraram-se a caminho do fim. O pároco, talvez pelo choque nos nervos diante de toda a situação, sofreu ainda por alguns dias e teve de ser levado a outra cidade. Haveria novo pároco em breve.

 Tudo isso se sabe mesmo porque foi em cercanias de grande cidade, de onde veio o novo pároco, que se dizia especialista nessas sortes de maldição. Um certo doutor Victor, polonês, passou por lá à chegada do novo pároco e frustrou-se em rodear-se de curiosos num bar da cidade e explicar, sob forte efeito de rum, que as carnes humanas se decompõem em gases sob a pressão do ar dentro dos caixões, gases venenosos para os pulmões dos vivos. Não era suficiente, na mente aldeã, para explicar uma chave que fora encontrada nas mãos de Herculano, a mesma chave que um menino dissera ver no pescoço de Josephina, no dia em que partira daquele lugar maldito.

Conto por: Renato Kress

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Silêncios


- ...e foi desesperador, seu padre! Ele ficava me olhando e sorrindo, sabe? Aquela imagem de Deus enorme, mas gigante mesmo, ficava me olhando com uns olhos azuis que pareciam dois oceanos e tudo aquilo era lindo, lindo demais. Mas era angustiante! Ocupava tudo! Daí ele começou a se afastar, sabe? Eu vi então o nariz e as barbas, e orelhas e todos aqueles cabelos que mais pareciam uma lã e então ele estava mais longe, eu vi o tronco, talvez de braços estendidos para mim, só que se afastando e ele irradiava muita luz, uma luz branca e azulada. Ao redor dele parecia tudo muito escuro, mesmo que ele emanasse muita luz, ainda assim, era como se estivesse num imenso sofá negro, como se fosse o universo, mas sem estrelas. Foi quando eu vi uma luz vermelha fraca, piscando à esquerda, e então, muito assim de repente e acelerando, um monte de pequenas luzes vermelhas e fortes e algumas ficavam amarelas, mas me davam a impressão de que eram pequenos seres vivos. Não sei. Como se fossem figuras negras e vermelhas piscando ao redor dele, e eram muitas, dezenas, centenas, então milhares e, à medida que ele se afastava elas ficavam mais nítidas, ondulando, como se fosse um rio de trevas ali circulando e aquilo tudo foi me dando náuseas. Então eu olhava para os olhos azuis, se afastando, mas ainda assim gigantescos, do tamanho de prédios agora, e eu podia ver as mãos estendidas e eu estava em cima de uma delas e ela estava se afastando. Aqueles seres vermelhos estavam todos eriçados, e giravam rápido e eu comecei a ver asas, asas de morcego! Enquanto os olhos ficavam do tamanho de caminhões, assim, as asas cresciam e alguns deles começavam a voar e tinham chifres e garras e... foi horrível, horrível! Porque os olhos estavam fixos em mim, olhando, sorrindo, mas não dizia nada! Nenhuma palavra! Só se afastavam, fixados em mim. Foi quando pensei em olhar para baixo porque estava em cima das mãos e em breve poderia não estar mais! Não sei o que me deu nem se o que aconteceu aconteceu porque olhei para baixo, mas... seu padre, quando olhei as linhas, as linhas das mãos que antes eram montanhas, agora eram rabiscos de giz branco sobre uma espécie de areia, de areia luminosa, mas quase já não me tocavam mais e eu me desesperei! Quando me desesperei levantei as mãos e tentei me agarrar ali, no que era chão ainda! E o chão... o chão... ficou negro! Completamente preto seu padre! Mas ainda havia chão e eu tinha uma sensação muito, muito ruim. Uma coisa opressiva, sabe? Mas havia muita, muita luz dos meus lados e acima de mim, uma luz branca, leve, suave, foi quando criei coragem para olhar para cima de novo. E eu olhei e era lindo! Centenas, não, milhares de seres luminosos, com asas e roupas claras e sorrisos e abraços e olhares piedosos, todos eles se aproximavam de mim, do alto e dos lados, mas... quando olhei no centro, ali, na minha frente... foi completamente horrível! Primeiro dois olhos de cobra, depois duas sombras, com chifres enormes, cheios de dobras e uma língua bifurcada dentro de uma mandíbula que sorria! Aqueles olhos poderiam me consumir completamente e eles me despiam e me batiam e me sorriam e quando me apercebi de mim vi dedos, do tamanho de prédios se fechando sobre mim! Tentei gritar em vão para os seres luminosos ao redor, mas eles pareciam me ignorar! Foi quando a figura negra e vermelha do centro começou a dançar, se divertindo com meu pânico! Fechei os olhos, mas não adiantou nada! Então olhei novamente para o chão e, quando vi, a figura no centro virava de lado e de costas e então eu vi de novo, aqueles lindos olhos azuis e aquela mão de suave areia luminosa e um sorriso plácido cercado por uma legião de horrendas criaturas que se mutilavam e cresciam e mergulhavam as presas no pescoço umas das outras. No centro ainda aquela barba de lã se afastava e eu podia ver agora o corpo inteiro, ainda que eu estivesse na ponta do dedo médio da mão dele e quando eu tentei falar algo - sinceramente não sei o quê, estava apavorada! - ele virou de lado e, nesse momento pude ver que as costas dele eram aquele monstro, aquela criatura desesperadoramente horripilante e quando ele virou de costas completamente a criatura começou a dançar para mim, e o dançar dela ensurdecia os seres de luz ao redor, esses seres que apareciam quando o monstro gigante aparecia ali atrás, enquanto as criaturas negras sumiam. Ele dançou e dançou por um longo tempo e quando acabou me olhou bem nos olhos, bem perto, apontou para trás de si, fez sinal de silêncio para mim, piscou o olho com as presas às mostra e virou, novamente. Foi quando acordei!

- Bem, minha filha, não cabe a nós interpretar os desígnios ou os grandes mistérios de Deus. Tenho fé que com uma semana de vindas aqui à igreja, 10 padres-nossos e 10 aves-maria todos os dias, principalmente antes de dormir, tudo se resolva.

Inês levantou incerta, ainda tensa por haver relembrado aquele misterioso e desesperador sonho que tivera noite passada. O padre saiu do confessionário com uma estranha pressa e já estava ao lado dela quando de um tropeço Inês chutou o degrau de madeira antiga estalando um ruído seco por todas as naves lateral e central da igreja. Foi quando o padre virou-se para ela, colocou o indicador sobre a boca e, piscando o olho, sorriu.

Conto e receita: Renato Kress

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Os dias que aconteceram na última hora...


Foi um estouro da memória que transbordou arregaçando as idéias e sensações e percepções e tudo aquilo era tão antigo e ao mesmo tempo vivo como uma explosão do dique afetivo em que ele se enclausurara há anos. Mais anos do que ele se permitira admitir. Mas admitir ou não era ridículo porque era um processo íntimo, diferente das artes expressionistas com que ele pincelava a própria vida íntima para os amigos e parentes. Não havia o que admitir ou não. Admitir a quem? A uma parte íntima de si mesmo? Ele sabia e isso bastava.


Foi tropeçando numa escada. No intervalo entre o copo na boca e o queixo no degrau. Naquele intervalo o corpo deu um passo de astronauta e flutuou livre, mas a quantidade excessiva de ar que o susto levou para dentro dos pulmões fraturou as fundações da barragem interna que ele nem mesmo se lembrava de haver erguido. Quebrou o alicerce do dia em que ele desaprendeu a amar. E foi tudo muito claro naquele tropeço: Lívia, olhos de sol, opressão, cheiros e muito choro. Tudo veio como um mergulho num caldeirão fervilhante de memórias.

A primeira memória longa correu seu corpo junto com o sangue no seu queixo. Era o nome dela, "Lívia" e a escada de degraus brancos. Lembrou daquele dia em que ele saiu correndo, desesperado, sem conseguir olhar para trás, olhar para ela... e um gosto de sangue.

Vamos tentar organizar as memórias dele para o leitor. Heitor é um homem sério. Advogado, 31 anos, extrovertido, senhor de si, cercado de amigos, amigas... especiais (digamos assim) e conquistas. Tem seu apartamento, sua moto e seu carro. Estaciona na primeira vaga que encontra quando chega no prédio, mesmo que as vagas sejam marcadas, e sempre resolve o embaraço no dia seguinte com um abraço forte e um sorriso franco e aberto para o legítimo dono da vaga. Compra todos pela simpatia, e é um cara de pau de marca maior.

O fato aqui é que Heitor caiu na escada. Numa escada estreita de uma casa noturna na Lapa, numa despretensiosa quinta feira comemorando o fim das aulas de improviso que havia feito nos últimos seis meses. Estava alcoolizado, a escada era estreita e longa, talvez alguém o tivesse empurrado, mas ele não se lembrava muito bem de haver visto a tal escada. Mas não pôde mesmo esquecer a impressão do tropeço e o ar estourando alguma coisa por dentro. Não era um estouro orgânico, mas afetivo. Ele soube que estourou quando lembrou dos degraus brancos da casa de Lívia, sua primeira namoradinha.

Aos quatorze anos Heitor conheceu Lívia, a única impressão que ele guardou de lá para cá, a mais forte, foi que os olhos azuis dela eram irritantemente brilhantes, como olhar para o sol. Ele tinha que mantê-la sorrindo porque assim ela contraía as pálpebras e ele conseguia olhar para ela. E Lívia amava ele, porque ele a fazia rir e ele amava ela, porque ela era linda. O que desabrochou dentro do coração dele fez com que horas e dias e semanas se dedicassem a fazê-la rir e os estudos se atrasaram, amigos, família e rua, tudo o mais definhou e sumiu e ele já não era ele e não se reconhecia ao se dedicar a ela. Toda essa entrega absoluta e intensa foi tragando tudo o que ele era e sentia em direção ao sol dos olhos dela. Uma gravidade absurda o jogava em translações diárias ao redor dela.

Até que ela pegou conjuntivite. Dois dias em casa. Ele foi ao colégio, ela não estava. O primeiro dia foi como ficar embaixo d´água sem conseguir emergir. Ela era a superfície, o oxigênio, a vida. Tudo o mais parecia lento, aquoso, recheado de uma pressão enervante e muito, extremamente cinza. O segundo dia foi mais sereno. Ele chegou cedo e pôde ouvir os pássaros em algum lugar ao redor do velho prédio ou no pátio do colégio. As cores eram pálidas e ele ouviu chamarem pelo nome dele, algumas vezes. No terceiro dia as árvores tinham um verde intenso e ele estava conversando no centro de uma roda de amigos quando viu a certeza no amor tragada ao encontrar com ela no pátio. Ela tinha o mesmo brilho de sempre - exceto por um certo vermelho ao redor dos olhos que bem poderia ser o fim da conjuntivite como um resquício das lágrimas de ontem - mas ela brilhava como o universo todo e não mais nem menos.

Naquele dia o pai dele o deixou na casa dela e viria pegá-lo em duas horas. Heitor sentou-se na escada com Lívia e viu o mundo. Para ele estava claro que ela o deixava doente, que sugar todas as cores do mundo para dentro dos olhos dela era uma espécie de bruxaria que ela sabia fazer. Talvez aprendesse com a mãe, elas tinham os mesmos olhos. Ele teve medo, medo de olhar de novo para os olhos dela. Nesse medo lhe faltou a piada pronta, o riso descarado e ele encarou o sol dela com os olhos nus. Ela estava atenta e tensa, com as safiras arregaladas para ele. Ele se assustou com aquele sacrilégio azul, levantou, tropeçou e largou o amor ali. Nas escadas brancas.

Conto por: Renato Kress

terça-feira, 1 de maio de 2012

Escalas, esferas, estrelas...

(Para meu amigo William Schindhelm Georg, feliz aniversário!)

Conservatório de Moscou, 27.04.2012


As portas do Conservatório bateram com uma força desmesurada. Entra uma figura sombria, encharcada da chuva. O maestro Piotr Nikolay Kropnik não era visto desde a década passada por nenhum dos alunos ou professores. Seus cabelos em desalinho e acinzentados, a testa brilhante de suor, as mãos trêmulas e excitadas e a respiração arfante não condiziam com o aspecto sisudo que gravitava ao redor de sua figura outrora jovial e inquieta.

Há exatos dez anos o todo poderoso gênio da música mundial havia se ausentado do conservatório sem grandes explicações além de uma carta aberta aos alunos e outras duas, uma à família e outra à então noiva Mikaela. Uma vez a cada fim de ano sua mãe recebia em sua conta bancária um depósito vultoso e uma carta que só no terceiro dos dez últimos anos teve mais de uma folha. Digitada, impressa e assinada. Não era a ausência de afeto na carta que impressionava à senhora Kropnik, mas a ausência total de dados que não fossem sobre sua saúde e sobre a eterna "provável volta no ano que vem", "a excitação e a frustração disso tudo" e nada mais. A incerteza enclausurava o coração da velha mãe.

Apesar da sensação de inconveniência e desagrado geral pelo ensaio interrompido, todos acorreram a ajudar prontamente o grande maestro Piotr, um conhecido virtuoso do piano e violino, a sentar-se e tomar algo quente. Após alguns minutos de silêncio entre a avalanche de perguntas ele fungou, respirou fundo olhando para o pires com bolo, jogou os cabelos para trás da nuca, recompôs-se levantando os olhos e apontando, um a um, alguns de seus ex-alunos, dois do quais já lecionavam, todos exímios músicos.

Levou o grupo de colegas a um canto e lá sentou-se na arquibancada. Estava grave e sério como nunca antes. Olhou cada um dos presentes nos olhos antes de começar a falar.

- O que vocês sabem sobre a "Atlântida"?
- A cidade perdida? É um mito, professor. Uma metáfora sobre uma era de ouro. Todo mito tem uma cidade perfeita, como a Shangri-lá ou o Eldorado. Atlântida era a "cidade perfeita" dos gregos, não é? - Disse Yelina.

Um leve sorriso se esboçou no olhar do Maestro
- Unicórnios também eram mitos, Yelina. Então Marco Polo viajou à China e, no meio do caminho encontrou vários. Não riam antes de eu terminar a piada! Marco Polo viajou e nos trouxe relatos de unicórnios, cavalos enormes com chifres na frente da face, com a pele invulnerável. Tentou se desculpar por não conseguir trazer nenhum para a Europa, mas perdeu cinco dos seus melhores homens tentando capturar um espécime, mas sua pele "mágica" era invulnerável e eles eram criaturas muito agressivas. Isso não o impediu de trazer chifres de um cadáver deles de volta à Itália...

Esfregou a mão com raiva pelo rosto e bateu com ela na mesa, com força.
- Agora vocês riem! Usem suas cabeças! Não é porque Marco Polo não conseguiu trazer um unicórnio para a Europa que rinocerontes não existem! Entenderam agora? As histórias crescem com os anos, mas nem tudo é mentira e às vezes a verdade é mais simples do que se pode imaginar! Usem suas cabeças, pelo amor de Deus!

- Repito a pergunta: O que sabem sobre a Atlântida?
Mikayl tentava levar a sério tudo aquilo. Não queria ferir os sentimentos ou os nervos frágeis do seu antigo tutor: - Se era uma cidade ou um continente, diz a lenda que ela afundou no mar depois de uma catástrofe natural, certo? Talvez um maremoto, um tsunami, erupção vulcânica...
O professor recostou as costas na cadeira, satisfeito: - Sim, sim. Tudo isso pode ser causado por movimentos de placas tectônicas também. As enormes placas em cima das quais estão os continentes. Afundamento e surgimento de ilhas ou continentes acontecem quando elas se separam ou se encontram. Bem, para encurtar a conversa, digamos que alguns caras tenham encontrado um enorme rinoceronte e que ele adore música. Quem pode nos ajudar a fazê-lo dançar?

 Aeroporto de Forteventura, Ilhas Canárias, 29.04.2012

Os músicos desembarcaram em Forteventura e foram muitíssimo bem recebidos pela senhora Atkinson, uma alta e morena relações públicas que serviu de intérprete para as conversas entre eles, um grupo de engenheiros militares de língua inglesa, uma equipe de arquitetos italianos e espanhóis e uma equipe médica internacional. A caminho da mesa, na sala de conferência do hotel, Mikayl, um dos músicos, observou as siglas de várias empresas, de várias nacionalidades, nos papéis nas mãos de um dos arquitetos.

O maestro Piotr espalhou mapas e plantas de prédios quadrangulares e circulares pela mesa: "Vamos aos fatos: alguns de vocês já devem ter conhecimento do fato de que as muralhas e ruas da cidade de Atlântida foram descobertas pelo sistema de satélites que vasculha o globo, exatamente na localização determinada por Platão nas obras "Timeu" e "Crítias", a mil quilômetros de nossa localização atual." Silêncios e olhares se trocaram por alguns segundos.

" Vejo que alguns estão surpresos e outros não. Isso me intriga, mas no momento vamos aos fatos: A equipe que vocês vêem aqui está trabalhando a trinta anos na adaptação da tecnologia desenvolvida para perfuração de poços de petróleo em alto mar para descortinarmos parte a parte a cidade. A exatos doze anos descobriram uma câmara submarina repleta de cordas e tubos, um bolsão de ar retido por uma abóboda de cristal manteve essa câmara e outras áreas da cidade protegidas da corrosão do mar. Mergulhadores descobriram que se tratava de uma câmara sonora, ou seja, um gigantesco instrumento musical, provavelmente o maior do mundo. Tem pelo menos três vezes o tamanho... bem, olhem o esboço e as fotos."

Todos ficaram impressionados com a gigantesca pirâmide de vidro cercada por tubos e cordas, construída  sob um tanque que bem deveria ter sido uma piscina, que controlava a pressão do som por uma espécie de válvula hidráulica natural gigantesca. A altura parecia ser de uns trinta metros e a arquitetura interna de tubos espiralados permitiria uma acústica indescritível. Os músicos ficaram extasiados!

Enquanto ainda estavam impressionados com as formas e desenhos, a senhora Atkinson tomou a palavra rapidamente: "Thomes explicará melhor o processo". Um dos engenheiros, baixo, calvo e de mãos gordas levantou e demonstrou em alguns gráficos como grandes tubos ocos de quatro quilômetros de extensão por 500m de diâmetro eram introduzidos desde a superfície até o fundo do oceano e como grandes tanques sugavam a água de dentro desses tubos, por dias, até que uma equipe conseguisse descer para uma parte da cidade submersa. A pressão e as condições adversas do Talude Continental a essa profundidade já haviam destruído boa parte de tudo o que arqueólogos e arquitetos buscariam por ali, mas, na segunda expedição, uma câmara foi encontrada. Uma câmara circular permeada por cordas e colunas de ar de bronze e prata. A estrutura piramidal que antes achávamos que era composta por um grosso vidro que suportaria a pressão do oceano descobrimos a alguns anos que era composta por enormes paredes de diamante! Só conseguimos identificar do que se tratava após encontrarmos um desenho de um objeto que identificamos como o "monocórdio de Pitágoras".

Sim meus amigos, música! - Disse Piotr, com a mão trêmula e os olhos brilhantes.
Aparentemente o que por muitos anos foi tomado como uma experiência de Pitágoras para a descoberta dos intervalos e harmônicas era um afinador para instrumentos maiores, como essa câmara.

As escavações mostraram que as engrenagens desse salão musical estão conectadas com outras áreas da cidade às quais ainda não temos acesso e nós queremos saber o que aconteceria se elas fossem tocadas, mas para isso precisamos de músicos experientes que aprendam a manusear e...

"...de uma partitura!" Disse Mikayl. "Se há um mecanismo ativado por engrenagens ligadas a um instrumento ele deve estar sincronizado com movimentos específicos, com sons específicos, uma nota, melodia ou música. Sem a partitura nem o melhor grupo de músicos do mundo poderia 'ativar' esse mecanismo! Mesmo que conheçamos os instrumentos, não sabemos o quê tocar! É como um cofre com infinitas combinações! O senhor sabe disso! O senhor sempre soube disso! Que grandiosa perda de tempo se nos trouxeram até aqui sem uma partitura!" - disse enfim, prostrado em desânimo e descrédito, com os olhos fixos nos olhos do antigo professor e maestro.

Tudo a seu tempo, Mikayl. Tudo a seu tempo. Querem ver o instrumento ou não?


Descendo pelo tubo, 30.04.2012

Descendo pelo tubo numa espécie de plataforma móvel, um dos arquitetos explicava a situação ao curioso grupo de músicos: "Tínhamos certeza de que a partitura estaria nas paredes, como numa pirâmide egípcia ou maia, mas era impossível decifrar qualquer coisa ali porque as paredes eram lisas e muitas delas de diamante. Foi quando um dos arquitetos, pensando no monocórdio, teve a ideia da harmônica de Pitágoras ser integrada com a visão de universo de Ptolomeu, ou seja: ainda que cada nota dos tubos seja equivalente a um harmônico de um sopro mais intenso e que cada corda vibrasse em seções correspondentes a determinados harmônicos tocando em pontos de máximo que inibem harmônicos inferiores gerando uma consonância, a partitura estaria no alto! A forma dos bancos confirmou a ideia dele, sentar corretamente ali deixaria as costas arqueadas e os joelhos para cima, seria desconfortável, mas não se sentassem com os joelhos no encosto e as costas voltadas para o chão. Os bancos estavam virados para o céu!"

Já não havia céu a ser visto além de um ínfimo ponto claro no topo do tubo. Enfim chegaram ao fundo do tubo, com um barulho seco e toda a iluminação era baixa, porque os diamantes refletiam e coloriam tudo ao redor. O grupo sentou com um matemático e outro arquiteto e logo começaram a rabiscar e rabiscar sobre um papel. Alguém puxou um volume do "Crítias" de Platão do bolso e jogou no chão no meio daquelas cabeças ávidas por datas, números, hemisférios, notas, escalas... Piotr e um dos músicos estavam em volta do grupo de matemáticos e os demais simplesmente tentavam se acostumar com aluminosidade ambiente enquanto circundavam aquele estranho aposento com cordas de bronze e prata nos pisos e vários tubos ao centro, testando cada corda e tubo, fazendo notações sobre timbres, tons, semitons...

Perto do grupo se ouvia:
- "Os primeiros componentes da série harmônica seriam os primeiros termos da série de Fourier, óbvio!"
- "O que você propõe é uma sinfonia das esferas celestes! Lindo! Lindo!"

Um mapa do céu tal qual era visto à época que Platão descrevera como sendo a época de Atlântida foi colocado nas mãos do maestro. - "Aqui está a sua partitura"

O Maestro corou de alegria e vergonha: Obrigado amigos, mas de qualquer forma ainda temos 17 andamentos possíveis!

- Mas como?

Mikayl explicava enquanto Piotr olhava boquiaberto para a "partitura celeste": - Temos tempos para efetuar as notas, sabe? Se é um mecanismo musical, ele deve ter um tempo certo, não só as notas certas. Isso é impossível de se executar! Podemos tocar mil vezes e não acharmos o tempo certo. Isso considerando que os cálculos para a "partitura" que vocês criaram estão certos. E ler uma cartografia do céu não nos dá uma sequência linear de notas, é impossível!

Ainda assim os músicos foram posicionados e as notas foram tocadas. Nada ocorreu. Nada além de Mikayl engasgar com a boca num dos tubos. E foram tocadas pela segunda e terceira e quarta vez até que Piotr levantou os braços e pediu silêncio. Puxou um dos italianos e perguntou asperamente: "O nome! Daquele italiano que descobriu a fórmula da espiral, 'A' espiral! Aquela das flores! Ela dará o tempo e a seqüência das notas!"

Ainda atônito e tentando se livrar das mãos do maestro puxando pela sua gola, o magro e pensativo Nicollò disse: "Fibonacci! nulo, uno, uno, due, tre, cinque, otto, tredici, ventuno..." Ele mesmo saiu correndo e tomando das mãos dos músicos todas as folhas com os desenhos das estrelas... rabiscou uma espiral a partir da estrela localizada no centro, Antares.

Mikayl apontou para o mapa: "Isso! Dá para tocar isso!"

Tocaram. A música mais bela, harmônica, perfeita e celeste que já ouviram. Harmonia celestial. Cada um dos músicos, assoprando, correndo pelas cordas, agachando em algumas outras, puxando e soltando as engrenagens daquele estranho aparato, tocaram. Quando todos se deliciavam daquela sinfonia perfeita, luzes começaram a  brotar de pequenos cabos no chão, luzes amarelas, então azuis, vermelhas e verdes, muitas luzes. A música penetrava no íntimo e fazia todos os corações e órgãos ali naquele tubo se inflarem e desinflarem no mesmo ritmo. Nunca nenhum deles havia sentido em suas vidas tamanha compaixão e empatia, suas moléculas pareciam vibrar no mesmo ritmo, na mesma cadência. O ser de cada um era o ser de todos. Talvez como resultado da pressão submarina ou pela excitação do momento, ainda que não houvesse água alguma naquele tubo todos começaram a enxergar pequenas partículas a cada nota e ondas a cada acorde, multicoloridas partículas e ondas que saíam dos aparelhos até que também os aparelhos não passassem de partículas e ondas e também seus corpos e tudo o mais.

A plataforma que levava a equipe emergiu do fundo do tubo, horas depois, vazia.

Conto e Receita: Renato Kress





segunda-feira, 16 de abril de 2012

Serial

Então ela resolveu abrir a carta, aquela carta amassada e amarelada que seu amigo havia escrito antes de viajar para escalar o Kilimanjaro. Eles nunca mais se viram. Naquele tempo, em Santa Teresa, ela estava mais preocupada em aprender a tocar violão e a saber o nome do menino que morava no condomínio que tinha um bondinho dentro. Ela recebeu a carta com desdém, quando o professor de violão viajou. Depois, não teve coragem de abrir. Até encontrá-la na mudança de hoje.

Ela pôde reconhecer a tipografia das antigas máquinas de escrever, ainda borrada sobre um papel amarelado.

"Bom dia!
Estou te escrevendo porque passo. Hoje vou a novos lugares e estarei onde não estiveres, estarei à sua frente todo o tempo e, paradoxalmente, só andarei pelo caminho que você construir. Viverei recheado de sonhos e expectativas e desejos, mas só me moverei pelos teus atos, gravados na pedra talhada de cada segundo da tua existência. Passarei, como todos passarão, mas ainda que eu passe, estarei sempre e ainda, adiante. Posso te olhar como o próprio demônio ameaça entre dentes trincados, posso te acenar como uma virgem donzela completamente lânguida, entregue, à espera da tua espada salvadora, posso e devo e vou te surpreender, sempre.

O meu tempo é o teu tempo. Nem mais nem menos. Embora você insista em me empurrar pra frente, nunca estarei a mais de um passo de você, nunca passarei um terreno que você não tenha preparado para mim. E ainda assim estou livre, terra nova, para que plantes no meu seio as frutas cujo sumo deseja e vou te dar mais e menos do que plantou, sempre. Posso ser arenoso, aguado, seco ou ordinário, posso ser aéreo ou ígneo, posso ser muitas coisas mas serei apenas o que tuas mãos cavarem para fora de mim mesmo, como uma escultura presa num bloco de mármore cru.

Eu vou desviar você do seu caminho quando menos esperar e na curva do desvio você aprenderá um novo rumo. Por mais que você me segure firme às rédeas vou relinchar e chacoalhar e empinar e é claro que invariavelmente eu te jogarei para fora da sela. E talvez na queda, se você tiver olhos, no chão de terra batida você vai tropeçar em um trilho e o que era uma cavalgada livre e penosa pode tornar-se uma prazerosa via expressa por algum tempo. O problema das vias expressas é que elas só levam onde outros já estiveram. Nada mal, quando é o que se quer. Eu posso ser essa via expressa ou essa trilha aberta a galopes da potência controlada. Eu vou torcer você, mudar você, caçoar das tuas certezas apenas para testar o quão profundas são as tuas raízes. E se elas forem rasas, não tenha dúvidas, eu vou derrubar você, sempre. Mas não se preocupe demais, ninguém jamais saiu vivo deste jogo.

Eu estou aqui para gargalhar na sua cara e, talvez, se voce tiver sorte ou espirito, ainda gargalhe de volta e, neste dia, quiçá, você me abrace e se no meu ouvido sussurrar pelo meu nome te direi:

Prazer, Destino."

Abaixo, numa letra corrida que ela não pôde reconhecer:

"Por favor leia, feche e entregue a alguém importante."

Conto e receita: Renato Kress

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Caçada branca

O aeroporto Nicola Tesla. Crianças correndo entre rugas de senhores e senhoras dobrados em corcundas e enredados entre panos negros e carmim trançado. As atendentes, altas com batons escuros, exibem sorrisos mecânicos e todos na sala de embarque observam, de soslaio, a cor do passaporte uns dos outros. Éramos todos obrigados a tê-los em mãos para embarcar.

A essa altura a fila de idosos e mães com crianças de colo embarcando na frente fazia minha testa umedecer e trazer aquele maldito calafrio que me percorria a espinha a uma semana e fazia meus dedos ficarem leves, prenunciando a ação. Tudo me dizia que já sabiam de mim.

Entrei no avião procurando especificamente pela minha poltrona. A todo custo evitando trocar olhares. Sentei na 17F, ao lado de uma bela menina de cabelos nos ombros. Pela janela as sombras da noite de Belgrado só permitiam ver as luzes da pista de decolagem. Implorava, intimamente, pela decolagem, e mais intensamente, por não ver sombras ou vultos na pista. Aquele avião não saía. Foi quando a exaustão do corpo me trouxe, no sono, lembranças fantásticas das últimas cinco noites. Tudo num longo flash, a conversa com Ferdinand Calmet numa noite de chuva no Charles de Gaule, as instalações da Ain Soph abaixo das ruínas de Löwenburg, as escoriações e as dores por todo o corpo, instrutores contraditórios, alimentação e sono regrados e essa viagem às pressas para a Cidade Branca atrás de um instrutor que desapareceu num vilarejo durante uma missão de rotina.

Havíamos perdido completamente o contato com a sede russa e isso não era sequer comentado. Teria que tratar-se de um assunto interno, problema de comunicações, algo que até então eles acreditavam que resolveriam em algumas horas. Um calafrio parecia percorrer em ondas as instalações do Ain Soph a cada hora que confirmávamos ainda não ter restabelecido comunicação. Agora sei que não resolverão. Precisamos de acesso aos Urais, sem eles não há suprimento, e sem ele, estamos perdidos. Recostando a cabeça na poltrona deixei a mente vagar pelas histórias que tem visitado meus sonhos desde a sete anos atrás, quando a notícia do falecimento de um primo de segundo grau que vivia viajando chegou junto com um envelope vinho, lacrado com cera vermelha. Em tempos de e-mail foi no mínimo, inusitado.

Mergulhando na poltrona, deixei minha alma se perder nas encruzilhadas sombrias das memórias. No tal vilarejo em que Lotar - o instrutor desaparecido - tivera feito seu último contato um garoto, ao reconhecer o broche na minha lapela, levou-me a uma mesa de canto onde disse que eu precisava ajudá-lo "porque é isso o que vocês fazem, não é?". Sei que tudo levava à sua namorada, Sladja, que estava a cada manhã mais pálida e fraca, para terror dos familiares que já haviam abandonado a crença nos oupires. Fiz o procedimento padrão: aluguei um bom cavalo, e, às cinco da manhã, estava às portas do cemitério do vilarejo. A hora era importante. Eu precisava do início do dia para operar sem perigo para mim ou para os demais, no intervalo entre a chegada da criatura e a aurora do dia. Passei pelos sepulcros dos familiares da menina até que o cavalo empinou, relinchou e se recusou a andar. Era do que eu precisava. Isso e as pegadas frescas me levaram a uma pequena tumba coletiva onde haviam várias gavetas em que se depositavam os corpos. Coisas modernas. Abri a gaveta e lá estava ele, um rapaz de seus dezoito anos, cabelos loiros e a face de um branco avermelhado como se houvesse sido maquiado ou esbofeteado. Um vermelho vivo. Minha mão escorreu pelo pescoço dele, levando a faca da lua e compensando o atraso do destino. Sladja melhorou em dois dias. Aos céticos da família expliquei que o pescoço é como o filé mignon, mas, enquanto pedia que ela mostrasse os dois pequenos furos entre seus seios, expliquei que existem criaturas com apetites mais... exóticos.

Trabalho padrão. Me incomodava que tenha se passado uma semana que perdemos notícia com nossa sede nos Urais. Um problema padrão de comunicação duraria algumas horas ou no máximo um dia para ser resolvido. Então ontem as comunicações com a Alemanha falharam também. Pego o jornal e não contenho o espasmo gélido nas mãos ao descobrir que grande parte das florestas Komi foram invadidas por laboratórios das indústrias farmacêuticas européias, principalmente alemãs. Estão todos loucos! Um ataque a Komi é uma declaração de guerra! Lembro-me da conversa, a sete anos, sobre a expedição geodésica espanhola e sua incrível descoberta, em 1735, no Equador. Com toda certeza sou procurado agora. Ainda devem haver outros instrutores e outros caçadores. Espero que pensem o mesmo que eu. Saio antes de atingir Nurembergue, desço em Viena e procuro caminho pela Espanha. O mais seguro agora é ir de navio. Se pretendo combater essa guerra é preciso refazer o caminho de Ulloa... ou ir à lua.

Conto e receita: Renato Kress

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Fundações

Quando viu - na gota do orvalho sobre a rosa matinal - o reflexo de um castelo atrás de sua nuca - ele não ficou desapontado por saber que não havia castelo atrás - ele sorriu porque soube onde ficariam as fundações. Era um homem comum, quatro membros, uma cabeça e ombros que suportavam não mais que o peso de suas estranhas certezas. Era um homem comum. O estranho nele, eram as certezas. 

A maior parte das pessoas ao redor, ele pensava, tinham muitas dúvidas sobre o próprio futuro, sobre a vida, sobre as formas de amar e ser amado, sobre a destinação dos impostos e as razões certas das guerras. Ele compartilhava dessas dúvidas também, é claro, era um homem comum. O que lhe acontecia de singular era o brotamento estranho de redes neurais no seu cérebro, um tropismo qualquer que lhe subia, nadando na glia, em direção ao que ele chamava de "vontade". Dessa tal "vontade" é que surgiam, numa espécie de insondável via láctea cerebral, as suas estranhas certezas.

Ele não sabia exatamente como, mas também não questionava, o fato é que não sabia como mas via o mundo inteiro como um enorme ajuntamento caótico de pirâmides e lápides. Ele olhava para seu prédio e claramente via aquelas paredes como obras das mãos de homens que possivelmente estariam mortos àquela hora, seu carro era de um ano atrás, mas a ideia de um motor a combustão utilizando combustível fóssil com bancos e rodas e portas era uma criação de um homem, ou de um grupo de homens, que com certeza já estavam mortos. O sistema democrático, as oligarquias, os casamentos, o pão francês, a carta de amor e o cadarço para amarrar os sapatos, tudo aquilo para ele cheirava a morte, porque eram trabalhos e criações de quem agora alimentava os vermes sob a terra.

É claro que a primeira vez que esse homem comum teve essa certeza um sentimento de vazio e prostração lhe invadiu. Ele ficou desalentado porque nada era "natural", o mundo inteiro, desde o sabonete até comer sentado eram invenções e ele não lembrava de ter tomado parte em nenhuma delas. Ele só aceitava e convivia. Conversando com amigos ficou sabendo do tal niilismo - dessa coisa de não acreditar em nada - e isso deixou ele prostrado no sofá por uns dias, pensando que não costurou nenhuma das suas roupas, que não saberia montar uma bicicleta caso fosse preciso, e que aquilo tudo ao redor lhe lembrava um grande cemitério de idéias.

Foi quando ele teve a primeira. Sinceramente ele não lembrava mais, hoje em dia, qual foi a primeira, mas na verdade não importava, porque ela era de uma natureza virótica, a primeira gerou a segunda, quase que por partenogênese a terceira levou à sétima e então ele não parou mais. Eram muitas, eram longas, grandes, pequenas, inusitadas, leves, densas, intermitentes, contínuas, eternas, eram várias e várias formas de ver aquilo tudo de um novo jeito, de uma nova forma. Como milhares de óculos em forma de borboleta a lhe pousarem sobre o nariz e mudar a imagem do mundo. E os cemitérios foram virando parques de diversões onde ele se perguntava sempre: "Por que não?", "E se fosse diferente?", "E se não fosse obrigatório pensar assim, como seria?".

Isso não mudou as dúvidas antigas. Ele continuava com elas. Ele não sabia ainda sobre o futuro, sobre a vida e sobre o amor, ele não tinha a menor ideia da destinação dos impostos, mas para alguns assuntos ele poderia criar algumas respostas, para outros ele poderia disseminar melhores perguntas. Por isso mesmo, quando ele viu na gota do orvalho sobre a rosa, o reflexo de um castelo que não estava na sua nuca ele não ficou desapontado por saber que não havia castelo atrás, ele sorriu, porque soube onde ficariam as fundações.

Renato Kress

Postagens populares