terça-feira, 1 de maio de 2012

Escalas, esferas, estrelas...

(Para meu amigo William Schindhelm Georg, feliz aniversário!)

Conservatório de Moscou, 27.04.2012


As portas do Conservatório bateram com uma força desmesurada. Entra uma figura sombria, encharcada da chuva. O maestro Piotr Nikolay Kropnik não era visto desde a década passada por nenhum dos alunos ou professores. Seus cabelos em desalinho e acinzentados, a testa brilhante de suor, as mãos trêmulas e excitadas e a respiração arfante não condiziam com o aspecto sisudo que gravitava ao redor de sua figura outrora jovial e inquieta.

Há exatos dez anos o todo poderoso gênio da música mundial havia se ausentado do conservatório sem grandes explicações além de uma carta aberta aos alunos e outras duas, uma à família e outra à então noiva Mikaela. Uma vez a cada fim de ano sua mãe recebia em sua conta bancária um depósito vultoso e uma carta que só no terceiro dos dez últimos anos teve mais de uma folha. Digitada, impressa e assinada. Não era a ausência de afeto na carta que impressionava à senhora Kropnik, mas a ausência total de dados que não fossem sobre sua saúde e sobre a eterna "provável volta no ano que vem", "a excitação e a frustração disso tudo" e nada mais. A incerteza enclausurava o coração da velha mãe.

Apesar da sensação de inconveniência e desagrado geral pelo ensaio interrompido, todos acorreram a ajudar prontamente o grande maestro Piotr, um conhecido virtuoso do piano e violino, a sentar-se e tomar algo quente. Após alguns minutos de silêncio entre a avalanche de perguntas ele fungou, respirou fundo olhando para o pires com bolo, jogou os cabelos para trás da nuca, recompôs-se levantando os olhos e apontando, um a um, alguns de seus ex-alunos, dois do quais já lecionavam, todos exímios músicos.

Levou o grupo de colegas a um canto e lá sentou-se na arquibancada. Estava grave e sério como nunca antes. Olhou cada um dos presentes nos olhos antes de começar a falar.

- O que vocês sabem sobre a "Atlântida"?
- A cidade perdida? É um mito, professor. Uma metáfora sobre uma era de ouro. Todo mito tem uma cidade perfeita, como a Shangri-lá ou o Eldorado. Atlântida era a "cidade perfeita" dos gregos, não é? - Disse Yelina.

Um leve sorriso se esboçou no olhar do Maestro
- Unicórnios também eram mitos, Yelina. Então Marco Polo viajou à China e, no meio do caminho encontrou vários. Não riam antes de eu terminar a piada! Marco Polo viajou e nos trouxe relatos de unicórnios, cavalos enormes com chifres na frente da face, com a pele invulnerável. Tentou se desculpar por não conseguir trazer nenhum para a Europa, mas perdeu cinco dos seus melhores homens tentando capturar um espécime, mas sua pele "mágica" era invulnerável e eles eram criaturas muito agressivas. Isso não o impediu de trazer chifres de um cadáver deles de volta à Itália...

Esfregou a mão com raiva pelo rosto e bateu com ela na mesa, com força.
- Agora vocês riem! Usem suas cabeças! Não é porque Marco Polo não conseguiu trazer um unicórnio para a Europa que rinocerontes não existem! Entenderam agora? As histórias crescem com os anos, mas nem tudo é mentira e às vezes a verdade é mais simples do que se pode imaginar! Usem suas cabeças, pelo amor de Deus!

- Repito a pergunta: O que sabem sobre a Atlântida?
Mikayl tentava levar a sério tudo aquilo. Não queria ferir os sentimentos ou os nervos frágeis do seu antigo tutor: - Se era uma cidade ou um continente, diz a lenda que ela afundou no mar depois de uma catástrofe natural, certo? Talvez um maremoto, um tsunami, erupção vulcânica...
O professor recostou as costas na cadeira, satisfeito: - Sim, sim. Tudo isso pode ser causado por movimentos de placas tectônicas também. As enormes placas em cima das quais estão os continentes. Afundamento e surgimento de ilhas ou continentes acontecem quando elas se separam ou se encontram. Bem, para encurtar a conversa, digamos que alguns caras tenham encontrado um enorme rinoceronte e que ele adore música. Quem pode nos ajudar a fazê-lo dançar?

 Aeroporto de Forteventura, Ilhas Canárias, 29.04.2012

Os músicos desembarcaram em Forteventura e foram muitíssimo bem recebidos pela senhora Atkinson, uma alta e morena relações públicas que serviu de intérprete para as conversas entre eles, um grupo de engenheiros militares de língua inglesa, uma equipe de arquitetos italianos e espanhóis e uma equipe médica internacional. A caminho da mesa, na sala de conferência do hotel, Mikayl, um dos músicos, observou as siglas de várias empresas, de várias nacionalidades, nos papéis nas mãos de um dos arquitetos.

O maestro Piotr espalhou mapas e plantas de prédios quadrangulares e circulares pela mesa: "Vamos aos fatos: alguns de vocês já devem ter conhecimento do fato de que as muralhas e ruas da cidade de Atlântida foram descobertas pelo sistema de satélites que vasculha o globo, exatamente na localização determinada por Platão nas obras "Timeu" e "Crítias", a mil quilômetros de nossa localização atual." Silêncios e olhares se trocaram por alguns segundos.

" Vejo que alguns estão surpresos e outros não. Isso me intriga, mas no momento vamos aos fatos: A equipe que vocês vêem aqui está trabalhando a trinta anos na adaptação da tecnologia desenvolvida para perfuração de poços de petróleo em alto mar para descortinarmos parte a parte a cidade. A exatos doze anos descobriram uma câmara submarina repleta de cordas e tubos, um bolsão de ar retido por uma abóboda de cristal manteve essa câmara e outras áreas da cidade protegidas da corrosão do mar. Mergulhadores descobriram que se tratava de uma câmara sonora, ou seja, um gigantesco instrumento musical, provavelmente o maior do mundo. Tem pelo menos três vezes o tamanho... bem, olhem o esboço e as fotos."

Todos ficaram impressionados com a gigantesca pirâmide de vidro cercada por tubos e cordas, construída  sob um tanque que bem deveria ter sido uma piscina, que controlava a pressão do som por uma espécie de válvula hidráulica natural gigantesca. A altura parecia ser de uns trinta metros e a arquitetura interna de tubos espiralados permitiria uma acústica indescritível. Os músicos ficaram extasiados!

Enquanto ainda estavam impressionados com as formas e desenhos, a senhora Atkinson tomou a palavra rapidamente: "Thomes explicará melhor o processo". Um dos engenheiros, baixo, calvo e de mãos gordas levantou e demonstrou em alguns gráficos como grandes tubos ocos de quatro quilômetros de extensão por 500m de diâmetro eram introduzidos desde a superfície até o fundo do oceano e como grandes tanques sugavam a água de dentro desses tubos, por dias, até que uma equipe conseguisse descer para uma parte da cidade submersa. A pressão e as condições adversas do Talude Continental a essa profundidade já haviam destruído boa parte de tudo o que arqueólogos e arquitetos buscariam por ali, mas, na segunda expedição, uma câmara foi encontrada. Uma câmara circular permeada por cordas e colunas de ar de bronze e prata. A estrutura piramidal que antes achávamos que era composta por um grosso vidro que suportaria a pressão do oceano descobrimos a alguns anos que era composta por enormes paredes de diamante! Só conseguimos identificar do que se tratava após encontrarmos um desenho de um objeto que identificamos como o "monocórdio de Pitágoras".

Sim meus amigos, música! - Disse Piotr, com a mão trêmula e os olhos brilhantes.
Aparentemente o que por muitos anos foi tomado como uma experiência de Pitágoras para a descoberta dos intervalos e harmônicas era um afinador para instrumentos maiores, como essa câmara.

As escavações mostraram que as engrenagens desse salão musical estão conectadas com outras áreas da cidade às quais ainda não temos acesso e nós queremos saber o que aconteceria se elas fossem tocadas, mas para isso precisamos de músicos experientes que aprendam a manusear e...

"...de uma partitura!" Disse Mikayl. "Se há um mecanismo ativado por engrenagens ligadas a um instrumento ele deve estar sincronizado com movimentos específicos, com sons específicos, uma nota, melodia ou música. Sem a partitura nem o melhor grupo de músicos do mundo poderia 'ativar' esse mecanismo! Mesmo que conheçamos os instrumentos, não sabemos o quê tocar! É como um cofre com infinitas combinações! O senhor sabe disso! O senhor sempre soube disso! Que grandiosa perda de tempo se nos trouxeram até aqui sem uma partitura!" - disse enfim, prostrado em desânimo e descrédito, com os olhos fixos nos olhos do antigo professor e maestro.

Tudo a seu tempo, Mikayl. Tudo a seu tempo. Querem ver o instrumento ou não?


Descendo pelo tubo, 30.04.2012

Descendo pelo tubo numa espécie de plataforma móvel, um dos arquitetos explicava a situação ao curioso grupo de músicos: "Tínhamos certeza de que a partitura estaria nas paredes, como numa pirâmide egípcia ou maia, mas era impossível decifrar qualquer coisa ali porque as paredes eram lisas e muitas delas de diamante. Foi quando um dos arquitetos, pensando no monocórdio, teve a ideia da harmônica de Pitágoras ser integrada com a visão de universo de Ptolomeu, ou seja: ainda que cada nota dos tubos seja equivalente a um harmônico de um sopro mais intenso e que cada corda vibrasse em seções correspondentes a determinados harmônicos tocando em pontos de máximo que inibem harmônicos inferiores gerando uma consonância, a partitura estaria no alto! A forma dos bancos confirmou a ideia dele, sentar corretamente ali deixaria as costas arqueadas e os joelhos para cima, seria desconfortável, mas não se sentassem com os joelhos no encosto e as costas voltadas para o chão. Os bancos estavam virados para o céu!"

Já não havia céu a ser visto além de um ínfimo ponto claro no topo do tubo. Enfim chegaram ao fundo do tubo, com um barulho seco e toda a iluminação era baixa, porque os diamantes refletiam e coloriam tudo ao redor. O grupo sentou com um matemático e outro arquiteto e logo começaram a rabiscar e rabiscar sobre um papel. Alguém puxou um volume do "Crítias" de Platão do bolso e jogou no chão no meio daquelas cabeças ávidas por datas, números, hemisférios, notas, escalas... Piotr e um dos músicos estavam em volta do grupo de matemáticos e os demais simplesmente tentavam se acostumar com aluminosidade ambiente enquanto circundavam aquele estranho aposento com cordas de bronze e prata nos pisos e vários tubos ao centro, testando cada corda e tubo, fazendo notações sobre timbres, tons, semitons...

Perto do grupo se ouvia:
- "Os primeiros componentes da série harmônica seriam os primeiros termos da série de Fourier, óbvio!"
- "O que você propõe é uma sinfonia das esferas celestes! Lindo! Lindo!"

Um mapa do céu tal qual era visto à época que Platão descrevera como sendo a época de Atlântida foi colocado nas mãos do maestro. - "Aqui está a sua partitura"

O Maestro corou de alegria e vergonha: Obrigado amigos, mas de qualquer forma ainda temos 17 andamentos possíveis!

- Mas como?

Mikayl explicava enquanto Piotr olhava boquiaberto para a "partitura celeste": - Temos tempos para efetuar as notas, sabe? Se é um mecanismo musical, ele deve ter um tempo certo, não só as notas certas. Isso é impossível de se executar! Podemos tocar mil vezes e não acharmos o tempo certo. Isso considerando que os cálculos para a "partitura" que vocês criaram estão certos. E ler uma cartografia do céu não nos dá uma sequência linear de notas, é impossível!

Ainda assim os músicos foram posicionados e as notas foram tocadas. Nada ocorreu. Nada além de Mikayl engasgar com a boca num dos tubos. E foram tocadas pela segunda e terceira e quarta vez até que Piotr levantou os braços e pediu silêncio. Puxou um dos italianos e perguntou asperamente: "O nome! Daquele italiano que descobriu a fórmula da espiral, 'A' espiral! Aquela das flores! Ela dará o tempo e a seqüência das notas!"

Ainda atônito e tentando se livrar das mãos do maestro puxando pela sua gola, o magro e pensativo Nicollò disse: "Fibonacci! nulo, uno, uno, due, tre, cinque, otto, tredici, ventuno..." Ele mesmo saiu correndo e tomando das mãos dos músicos todas as folhas com os desenhos das estrelas... rabiscou uma espiral a partir da estrela localizada no centro, Antares.

Mikayl apontou para o mapa: "Isso! Dá para tocar isso!"

Tocaram. A música mais bela, harmônica, perfeita e celeste que já ouviram. Harmonia celestial. Cada um dos músicos, assoprando, correndo pelas cordas, agachando em algumas outras, puxando e soltando as engrenagens daquele estranho aparato, tocaram. Quando todos se deliciavam daquela sinfonia perfeita, luzes começaram a  brotar de pequenos cabos no chão, luzes amarelas, então azuis, vermelhas e verdes, muitas luzes. A música penetrava no íntimo e fazia todos os corações e órgãos ali naquele tubo se inflarem e desinflarem no mesmo ritmo. Nunca nenhum deles havia sentido em suas vidas tamanha compaixão e empatia, suas moléculas pareciam vibrar no mesmo ritmo, na mesma cadência. O ser de cada um era o ser de todos. Talvez como resultado da pressão submarina ou pela excitação do momento, ainda que não houvesse água alguma naquele tubo todos começaram a enxergar pequenas partículas a cada nota e ondas a cada acorde, multicoloridas partículas e ondas que saíam dos aparelhos até que também os aparelhos não passassem de partículas e ondas e também seus corpos e tudo o mais.

A plataforma que levava a equipe emergiu do fundo do tubo, horas depois, vazia.

Conto e Receita: Renato Kress





3 comentários:

  1. As mais belas e verdadeiras sifonias tocam a sintonia entre almas, abstraindo tudo o que envolve a razão. Grande abraço!

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  2. Não sei o que mais delicioso, o Conto ou o café!

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  3. Uma verdadeira viagem acompanhar as imagens que se formam... cativante.

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