sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Almas gêmeas

Enquanto isso, naquele site de relacionamento:

- Oi, gostei da foto. Você é enfermeira, médica?
- Não. Farmacêutica. Me chamo Indústria. "Farmacêutica" é só o titulo.
- Interessante. E você faz o quê? 
- Crio doenças, remédios com vários efeitos colaterais, pago congressos de fim de ano em resorts de luxo para os médicos que baterem minhas metas de vendas, essas coisas. E você? Esse "M.F." é de quê? Marco Feliciano?


- Não, que absurdo! Eu tenho escrúpulos! Quer dizer, um pouco mais... prazer, Financeiro, Mercado.


- Que imponente esse nome! E você faz o que? 


- Engraçado... tava aqui pensando. Acho que fazemos a mesma coisa. Onde você falou "doenças" eu falaria "crises", "remédios" eu já trocaria por "pacotes econômicos do FMI" e "médicos" por "correntistas da bolsa" ou "empresários de comunicações".


- Incrível, não é? E a gente acha que não vai encontrar ninguém nesses sites... você acredita em amor à primeira teclada?


- Eu só acredito em interesse, na verdade. E você?


- Agora eu acredito em amor...


por Renato Kress

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A ilha P´ong-lai

As pontas dos dedos eram puro hematoma pisado, cascas de calos amarelados e unhas cercadas de pequenas postas vinho escuro de sangue coagulado. Os músculos do punho, das costas e joelhos se retesavam juntos, enquanto ele vencia as últimas escarpas pedregosas que separavam o leito do rio cuja vazão já se tornara um murmúrio vencido depois de oitocentos metros de escalada. A névoa lacrimejava seus olhos e algo de ácido irritava suas narinas quando finalmente sua mão esquerda encontrou um ângulo reto entre a parede de rochas e o chão de gramíneas. Era ali.

Os primeiros passos, mórbidos, pesaram suas costas sobre seus joelhos cansados e quase o tragavam ao chão. A névoa ácida bruxuleava pelo caminho e qualquer coisa que estivesse a mais de três metros não era mais que uma espécie de contorno sutil ondulando em frente a uma nuvem de cegueira branca. Depois de vinte passos na direção do cheiro ácido que parecia ventar de algo imediatamente à sua frente, seus olhos viram pontos amarelos, luminosos, voando sobre a névoa. À medida que seus joelhos traziam os "vagalumes" até que se tornassem tochas, ao seu lado, ele pôde perceber a silhueta de uma casa de madeira ao mesmo tempo em que o vento lhe cortava um zunido estridente nas orelhas e passava por entre as frestas de lã do seu casaco irritando a área dos rins. As barras molhadas das calças começavam a ficar irritantemente frias no momento em que seu punho encontrou a porta, fazendo um barulho oco, mais baixo do que ele esperava.

Os olhos amendoados de uma menina de não mais de nove anos abriram a porta e o convidaram a entrar. Seus dedos ágeis indicaram que o sapato não entraria para além da soleira da porta e, enquanto ele descia as mãos para desamarrar o cadarço e o velcro da bota, a menina sumiu. Foram menos de três segundos para que ela voltasse com um balde de cerâmica negra e interior dourado, com uma infusão fumegante com um cheiro intenso de ervas e eucalipto. Aquela rapidez só era menos inquietante que o sorriso dela. Deixou o balde sobre o assoalho em frente a uma cadeira e novamente indicou, agora com o olhar, que ele fosse se sentar por ali, com os pés naquele refogado aromático.

A casa pareceu a ele muito maior por dentro que por fora, toda acarpetada nas paredes com tapeçarias que provavelmente pertenceram à bisavó da menina. Eram faisões, fênixes, grous coroados,  pavões, perdizes e outras aves que ele não conseguiu identificar numa profusão inebriante de cores e formas e qualidades variáveis de trançado. Tudo muito bem conservado e limpo, principalmente os fios de ouro que cintilavam por todas as tapeçarias. Ele perguntou à menina sobre sua avó e recebeu, como resposta, um pano quente que foi amarrado sobre sua testa e um chá quente, forte e amargo demais para ser tomado de primeira, ainda que ele tivesse muita sede. O chá veio na mesma cerâmica pintada de negro, com o mesmo interior dourado e luminoso.

Ele voltou a perguntar sobre a avó, a menina voltou a oferecer o chá. Com certeza não falavam a mesma língua, apesar de ele já estar naquela estranha ilha por dois longos anos essa era a segunda pessoa com quem se encontrava. A primeira era um demente alucinado, com certeza. Oito estações do ano em busca daquela casa, no alto daquelas pedras, e parece que a dona não estava. De qualquer forma a neta fazia o seu melhor e, com o calor nos pés, vinham os sons de grandes asas batendo ao seu redor. Ele procurou o som, mas a menina apontava intensamente para o chá.

A cada gole o som do bater das asas ficava mais nítido, as cores das tapeçarias pareciam se mover com as sombras das aves como se levantadas por algum vento e todo o amarelo das asas das aves parecia começar a escorrer em direção aos seus pés. Foi quando ele sentiu um frio pela espinha que desceu formigando seus órgãos internos. Uma vontade incontrolável de urinar fez com que ele fechasse os olhos enquanto tentava controlar a bexiga. A vontade passou como veio e seus olhos se arregalaram procurando pela menina, que parecia ter agora uns dezoito ou dezenove anos e deslizava os lábios numa espécie estranha de sorriso.

As mãos quentes da adolescente tocaram as mãos sensíveis, frias e laceradas da subida rochosa e ele viu as feridas se fechando, os coágulos diminuindo, os calos sumindo e a pele rejuvenescendo. Ele olha, assustado, para a linda mulher de trinta e poucos anos descendo os lábios sobre os seus. Ele fecha os olhos e sente seus lábios cicatrizarem das rachaduras do frio, sua língua ficando novamente úmida, seu estômago descolar as paredes e todo seu corpo sendo preenchido por uma sensação quase imaterial de saciedade física, íntima, erótica, intuitiva, espiritual. Seus braços são tomados por um arroubo de energia, seus músculos parecem leves e plenos de vigor.

Instantaneamente ele levanta. Levanta ainda beijando aquela boca doce que vai ficando cada vez mais leve, macia, seca e amarga. Seus braços se percebem tocando uma pele macilenta, murcha e arenosa. Seus olhos se abrem e num grito ele arremessa aquela carcaça idosa que substituíra a bela menina. Ele está em pânico, sua respiração oscila rápida, grave, pesada. Um vulto aparece por trás da cortina, a voz da velha diz coisas incompreensíveis colada ao carpete, segurando com quase nenhuma força ao pé de uma cadeira.

Ainda hesitante, suas costas se arqueiam para perto da cortina e ele puxa um pano frisado para encontrar apenas o reflexo de si mesmo, mas o reflexo de si aos dezesseis anos de idade, não mais aos seus costumeiros cinquenta! Ele sorri, tocando o próprio rosto, deixa que os dedos indicador e médio passeiem sobre seus próprios lábios, enquanto se aproxima de si mesmo arregalando os olhos para o reflexo no vidro, arreganhando os dentes num sorriso lascivo. Sua mente o leva às palavras no manuscrito mágico do alquimista Li Chao-kiun, onde ele recomenda ao imperador Wu, da dinastia Han:

"Sacrificai o corpo ao frio e ao forno (tsao), e podereis atrair seres (sobrenaturais); quando os tiveres feito aparecer, o pó de cinábrio poderá ser transmutado em ouro amarelo; quando o ouro amarelo tiver sido produzido, com ele podereis fabricar utensílios para comer e beber e então tereis uma longevidade prolongada. Quando a vossa longevidade for prolongada, poderei ver os bem aventurados (hsien) da ilha P´ong-lai, que fica no meio dos mares. Na maior escarpa sob o rio dessa ilha sacrificarás a ti mesmo perante a velha e já não morrereis." 

A última frase não parece fazer muito sentido, mas quem se importa? Ele era jovem de novo!! A velha, inútil, fraca e indefesa mal conseguia se erguer do chão! Que importa que por alguns instantes tivesse sido a mais bela das mulheres? Já não passava agora de um saco de pele e ossos sobre o assoalho! Não poderia fazer mais nada! Foi quando sentiu um calafrio nas suas costas. Um calafrio doloroso. A mão correu para a região do rim e voltou empapada em sangue. Ele ouvia o barulho de asas, enquanto as pernas fraquejavam e sua cabeça batia estilhaçando o vidro da janela. Virou-se desesperado procurando pela velha. Ela não estava mais no chão, tudo girava muito rápido, o sangue escorria quente e ele se arrastou para perto da porta ouvindo barulhos de asas. Sua visão embaçava, seus dedos ficavam leves e fracos, por alguns instantes pareceu ver o reflexo de seu rosto, aos oitenta anos de idade, no fundo dourado do balde onde colocara os pés. Olhou seus dedos, ensanguentados, envelhecidos. Gritou e abafou o próprio grito, desesperado, ao ver uma coruja enorme, negra, com o bico encharcado de sangue gotejante, pousar no delicado ombro da jovem menina que lhe abria novamente a porta.

Conto por Renato Kress 

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