quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Odisséias

Sinceramente eu não sei. Não sei ao certo que tipo de demônio tragava todas as minhas esperanças para aquela curva na córnea do horizonte, onde outros loucos avistavam uma ilha. Lembro-me da história que minha mãe contava, de que ao atravessar o oceano comigo, meu pai acordou aflito, por duas noites seguidas, e me encontrou arranhando a parede do navio. Sempre na mesma direção. Um grande arranhado que acompanhava a curva que o comandante fazia. Talvez seja isso. Talvez eu sempre estivesse à procura dessa ilha.

O balanço das cordas roçando pelas minhas pernas e axilas me avisou que o barco se prendera nos recifes. Subi correndo as pedras, abandonando barco, razão e as vozes inebriantes da taverna na noite anterior. Era puro instinto. Pé ante pé diante de um matagal envolto em uma luz leste que vinha crescendo como um filete de sonho sob as silhuetas macias das árvores. Eu era as árvores.

Antes que o correr das águas de uma cachoeira me encontrasse a oeste eu sabia. Meu coração antecedeu pulsando o barulho da queda d´água, a clareira e o lago. Meus joelhos mergulharam na grama envergando aquela néctar cristalino para dentro da minha garganta. Sorri e pelas bordas dos lábios me escorriam filetes da mais ingênua felicidade. Aquilo que não se deveria negar a nenhum homem pode ser o maior dos tesouros quando tudo que se tem de si é o ser homem. Sem roupas, sem histórias, sem passados. Batizei-me entre as pedras e as curvas da queda. Eu era as águas.

O pensamento quis balbuciar qualquer coisa sobre escalar, mas o instinto fez coro com a intuição berrando estridentes que havia um caminho lateral. Contornei as pedras numa escalava suave, secando a felicidade no sol que seguia a minha subida, sorrindo comigo. É inexplicavelmente simples quando se começa a ouvir o murmúrio do teu íntimo. Ouvi a primeira vez em Budapeste, depois passou-se um longo silêncio até a França e agora aqui. Aqui ele grita, ele berra, ele urra na minha alma! Ele arrebenta as artérias e os sacos de ar no meu peito enquanto encontro as ruínas verde e brancas de um palácio que sempre fui eu.

Não enviem resgates. Não procurem meus ossos. Agradeço o carinho de todos os que se dedicaram de bom grado a me fazer ser o que esperavam de mim. Entendo seus sentimentos. Obrigado. Mas aquele não era eu. Eu sou a ilha.


Conto por Renato Kress

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