segunda-feira, 27 de maio de 2013

A última praia de Estêvão

Estêvão é funcionário público, gosta de ler e gosta de sol. Acordou antes de Ana, fez um pequeno lanche e saiu, naquele sábado, para a praia, no Leblon. Ele e seu livro do Chico Buarque. Alugou uma cadeira, sentou na beira da praia e leu. Chegou a perceber de relance uma sombra voadora sobre sua cabeça, mas não deu maior atenção. Seu compromisso, ali, antes de Ana chegar, era com as letras. Em dois segundos pulou na cadeira e soltou um sonoro "puta merda!" quando sentiu uma batida de asas desesperadas entre seus joelhos. O pombo ficara preso embaixo da sua cadeira e se debatia arrulhando desesperado.

Sua mão correu para arrancar a ave dali enquanto sua mente corria de volta para todos os estresses e desentendimentos da semana perguntando se nem na "merda" da praia ele teria um pingo de paz! Apertou uma massa de carne dura, musculosa e careca. Não parecia um pombo, mas fosse o que fosse estava bem seguro e ele iria arremessar para bem longe da sua bunda, da sua cadeira, do seu sábado! Sua primeira impressão foi a de que pegara um rato careca, mas não tinha rabo, tinha braços e pernas! Um pequeno homem, de uns vinte centímetros, careca, e estava mastigando metade do corpo do pombo.

Aquele homenzinho careca e nú olhou assustado para Estêvão e praguejou numa língua estranha, com os olhos arregalados. Seu braço esquerdo, preso, entre o dedo médio e o indicador, batia na mão de Estêvão para que soltasse. Entre curiosidade, medo e nojo, Estêvão enfiou homenzinho e resto de pombo no seu saco de pano junto com celular e livro e olhou ao redor. Era cedo ainda, poucas pessoas por ali e ninguém parecia ter visto aquela cena absurda.

O saco se debateu e caiu na areia e ele puxou a corda fechando antes que aquele homenzinho saísse. Depois olhou novamente ao redor e começou a se acalmar, respirou fundo e quis olhar de novo. Precisava reforçar a insanidade ou refazer a realidade, ali.

- Pirú, pirú, porra!
- O quê?
- Porra, caralho, porra, porra!
- Oi, calma! Eu... qual é o seu nome? O que é você? Larga o pombo!
- Nã, nã, meu, meu!

A voz era áspera e seca, como se arranhasse a garganta do homenzinho. Estêvão estava com aquele saco entre as pernas, vendo, lá dentro, aquele pequeno homem nú agachado triturando os ossos das asas do pombo com sua minúscula e firme mandíbula. Sua boca sem nenhum pelo estava encharcada de sangue e, às vezes, ele olhava para cima dando a nítida impressão de que não iria dividir seu café-da-manhã com aquele grande homem peludo.

- Eu não quero! Pode comer! Você... tem nome?
- Dááá, meu meu! - Disse o pequeno virando de costas para aquela grande cabeça no céu da bolsa.
- Já disse que não quero! Qual o seu nome?

E a mão de Estêvão entrou na mochila para apertar aquele ser estranho e careca. A mão precisava confirmar a vista. Dentro do saco o homenzinho se sacudia e tentava não sair, se agarrando no tecido e chutado o pulso e tentando morder aquela mão gigante...

Atrás e bem perto de Estêvão, com uma camisa do Vasco, estava João, instrutor de MMA, treinador de boxe, personal trainer e um cara tranquilo. Tranquilo quando não está com dois sobrinhos pequenos e a namorada, Mariana, sentados de frente para um cara que está, de costas, com a mão enfiada no meio das pernas, falando baixo e sacudindo os joelhos excitadamente no meio da praia!

João pede licença, levanta e vai até Estêvão, respirando fundo com os punhos cerrados.

- Amigo, que porra é essa?
- Hein? - Estêvão levanta os olhos assustado e fecha os joelhos sobre a mochila. Não conseguiria explicar por quê, mas estava completamente envergonhado, rosto vermelho, fala embargada.

- Eu, eu é...
- Mermão, o que é que você tava fazendo aí com a mão entre as pernas, seu animal? Tem criança aqui, infeliz!- e partiu pra cima de Estêvão enquanto falava. Este largou o saco se debatendo na areia e esticou as mãos para se explicar.

- Cara, vira essa mão pra lá! Porra! Cê tá maluco?
- Não, peraí, eu, é...
- Cara, olha só: eu tô com meus dois sobrinhos e a minha namorada aqui atrás e eu não vou ver você com a porra das mãos no meio das pernas se sacudindo na nossa frente! Entendeu? - Os olhos arregalados de João e sua orelha de brócolis diziam a Estêvão que era bom não argumentar muito naquele momento.
- É... tá... aham, desculpa então... eu...
- E não vem pra cima de mim, não, porra! Não explica nada! Fica aí e fica quieto, seu... doente!

Estêvão sentou com o coração a mil, boca aberta e mãos tremendo. O saco continuava se remexendo na sua frente e uma voz rouca saiu lá de dentro:

- Ná, ná... SEU DOENTE!

João já estava de costas. As costas de João voltaram para trás enquanto seu punho acertou em cheio a orelha de Estêvão, que caiu com cadeira e tudo, de lado, na praia quase deserta.

- Como é? Tá de sacanagem comigo, seu infeliz?
- Ná, ná... INFELIZ!
- Não, não, é... o saco! - implorou Estêvão, com os braços cobrindo o rosto, encolhido na areia.
- Quer no saco? Maravilha! Depois quer que eu te espanque onde mais? Pervertido filho da... o que é isso no saco? Tem um bicho no saco?

Estêvão ainda estava engatinhando desorientado e limpando a areia do rosto sem conseguir ouvir direito quando João avançou pra cima do saco.

- O que que tem aí, cara? Você tava passando o pau num gato, seu doente? É um pombo? Que porra é essa?
- É... eu...

O mais óbvio não passou pela cabeça de Estêvão. Na verdade alguma coisa nas entranhas dele estavam reviradas ali, e não era (só) o soco, nem a areia, mas uma estranha vergonha daquele ser pelado se revirando e grunhindo no seu saco. Ele não tinha como explicar. Isso para Estêvão era o maior crime, mais doloroso que o peso da mão de João era a imagem daquele homenzinho nú e careca falando palavrão e babado de sangue dentro do saco. O saco era dele... como explicar?

- Tô falando com você! É o quê? Me dá esse saco aqui!
Puxaram ao mesmo tempo o saco, que voou para perto da água. A confusão estava atraindo pessoas e um guarda municipal se aproximou com o cacetete na mão. Estêvão ajoelhado, João chamando o guarda, o saco perto da água, pessoas se avolumando, crianças indo pegar o saco...

- Tem um gnomo pelado no saco! Pronto! É isso! Me bate se quiser, cara, mas tem um gnomo lá! Pega o saco, olha! Ele... ele comeu um pombo e eu tirei ele debaixo da minha bunda! Pronto! Olha lá, pegaram o saco, vê lá dentro! Vê!

A resposta foi tão desesperada e absurda que as pessoas começaram a rir enquanto duas crianças traziam o saco para o guarda que o abriu de cabeça para baixo, deixando cair um celular, um livro e um lápis, e só.

Desde então Estêvão só pode ser encontrado na piscina do Flamengo, e com Ana.

Conto e receita por Renato Kress

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