segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Tortura

Era um ponto vermelho pulsando na calçada, Raíssa. Mas eu explico. Desde a terça passada eu tinha um som oco e estranho que me perseguia. Não era uma música, não tinha melodia, nem harmonia, era um som, um barulho mesmo. Era um eco interminável que começava lento todas as manhãs, quase impossível de ouvir, sabe? Cedinho pareciam gotas batendo numa pia de metal a uns vinte metros de mim. Não, eu simplesmente acordei assim, na terça passada, com esse barulho. Ele acelerava durante o dia. Quando eu corria, quando me atrasava no trabalho, ou depois do terceiro expresso seguido na quinta quando fiquei à noite de frente para aquela pilha de páginas de relatórios atrasados ignorando as ligações do João, deixei o telefone vibrando em cima de uma almofada azul. Não sei porque te contei que a almofada era azul, enfim, o barulho estava lá. E sempre que eu não tinha minha cabeça ocupada com nada, se me descuidava ou desinteressava... Quando olhava para o teto do quarto ou da varanda, ele aumentava o volume, mas aumentava dentro, como uma pressão, como uma vibração de um eco num vale, sabe?  Meu tórax parecia que ia explodir! Marquei um otorrino, devia ser uma otite qualquer, podia ter entrado água nos ouvidos nadando domingo, sei lá. Ele não diagnosticou nada. Aí foi que fiquei preocupada, sabe? Na mesma quarta jantei com João e não ouvi nada, nada o tempo inteiro. Ele falava e ria e me contava as histórias do trabalho lá dele e o quão incrível e esperto ele é e blá, blá, blá e eu olhava através daquilo e não ouvia o barulho. Comecei a ficar feliz e devo ter rido porque ele se animou a falar, cada vez mais chato! Quase falei para ele calar a boca e me levar para um motel logo, mas eu tinha certeza de que o barulho, no teto espelhado da suite que ele adora, ia ser insuportável para mim! Assim que ele foi ao banheiro, ouvi aquelas gotas, longe, se aproximando. Quando me vi estava em pé, no meio do restaurante, procurando o barulho e, estranho, ele estava com o cheiro de uma menina alta de cabelos pretos e ondulados como os seus. Foi aquilo que me lembrou você. Aquilo me irritou demais! Era infernal se você quer saber! Não ri não, é sério! Fui até o caixa direto, paguei e fui embora antes do João voltar. Ele não me ligou mais, claro. E o barulho aumentou na quinta e piorou na sexta. Fui a outro otorrino e ele me mandou procurar um psiquiatra... Claro que eu mandei ele tomar no cu! Como você acha que eu estava? Em frangalhos, Raíssa, destruída. Era dormir e acordar com aquela tortura desgraçada todo santo dia! Eu tinha que estar ocupada o tempo todo a todo tempo, ou o barulho aumentava, não podia pensar nele que o tum-tum-tum aumentava! Quando falei com os dois otorrinos quase não escutava o que eles diziam! Acho que devo ter gritado com eles, eu não sei. Não, eu não sei mesmo! Foi quando tropecei em você ontem que ficou insuportável! Devo ter apagado por isso, não sei. Obrigado por ficar comigo ali e por me ajudar a encontrar e levar para casa aquele ponto vermelho, pulsando na calçada, naquela mesma calçada onde nos vimos pela primeira vez, vinte anos atrás: Eu casada com Paulo, você com Fábio, eu te olhando nos olhos, passeando meus olhos pelos seus lábios, você mordendo os seus, pegando na minha mão a cada mudança de assunto, eles nos ostentando, as lindas e jovens esposas pelo centro do Rio, e nós mal respirando direito a cada olhar. Teu olhar é de uma indecência que deixa o Kama Sutra envergonhado! Tive que dizer que estava com frio, porque você me tocava e eu arrepiava do braço até o rêgo e a boca salivava e eu tinha que engolir e te olhar e morrer de ciúmes e inveja e desejo e raiva e um maldito tum-tum-tum que me doía da cabeça aos pés e me inquietava os joelhos e talvez meus dedos anestesiados nem tenham conseguido sentir aquela mancha vermelha de mim, descendo pelos meus braços até ficar ali, naquele dia, pulsando, sozinha, na calçada.

Conto por Renato Kress

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