terça-feira, 9 de abril de 2013

Uma noite entre os Ainos

Naquela noite a lua subiu lenta, deixando um rastro de negrume como um vapor quente que nos abraçava as carnes. Eram dois extremos geográficos, o limite norte da ilha mais ao leste do mundo. Abocanhava-me a visão do Pacífico e uma pequena mão, peluda, me puxava pelo braço instantes antes de que os deuses do sono me tragassem para trás. Era Pé-nú. Dei-lhe esse nome porque de todos seus parentes ele era o único cujo pé não tinha pelos. De resto era como todos os outros: baixo, membros socados e rijos e de pelagem espessa, com olhos rasgados de forma que alguns eu sequer reconheceria se dormiam ou não.

Pé-nú me puxou para a floresta ao norte de Kamakuri, repetia, a intervalos de três a cinco minutos, os mesmos sons que eu escreveria como "Kamui Omante" ou algo assim. Entramos no negro da floresta, sem tochas, sem luzes. Antes que meus olhos se acostumassem às trevas verdes tive de fazer das mãos olhos e tateava no vácuo, escorregando e batendo a cabeça muitas vezes. Numa delas Pé-nú disse a mim a mesma palavra que usava quando se dirigia às crianças: "Korom" (esse era o som). Me senti ridículo. Tinha e tenho ao menos uma década a mais de vida que esse pequeno aborígene do oriente.

Meus dedos sentiam o áspero frio de uma parede de rochas. Estávamos entrando em uma caverna. Percebi que meus olhos haviam se acostumado ao pouco de luz quando olhei para trás e vi a silhueta de outros dois amigos de Pé-nú chegando para nos acompanhar. À frente já não enxergava mais nada. Apenas o frio das rochas úmidas do orvalho. Meu coração tropeçava intenso a cada novo passo, a cada escorregadela, e minha respiração procurava imitar a respiração tranquila e ritmada dos meus acompanhantes. Algum tempo e senti que conspirávamos, respirávamos juntos ali no útero da noite. Isso me acalmou.

O sopro quente veio intenso, trepidando meu coração e concentração. Era uma nuvem, uma nuvem negra de dentes e garras e estava a menos de centímetros de nossas mãos e naquele íntimo espaço de concentração arrombei meu peito com o terror e então uma torrente de pés e joelhos e lascas de pedras e topos de caverna que se batiam com força na minha testa me trouxe de volta a luz agora perfeitamente visível da lua entre as folhagens. E todos subiram nas árvores, e Pé-Nú me empurrou para cima por duas vezes antes de descobrir que seria mais simples subir e me oferecer a mão. Havíamos ido para além de tudo o que é proibido e encararíamos, agora, o ódio do senhor das trevas. Era possível ouvir seu grunhido, seus berros e as rochas que se mexiam enquanto ele saía à nossa procura, à procura dos que haviam invadido seu território.

Pé-nú se pôs em pé, sobre o galho em que estava e, numa posição altiva, mergulhou seus olhos em mim e bateu no peito por duas vezes. Coisa que até então eu só havia visto os guerreiros daquela tribo fazer. Acho que ele queria me dizer que agora era um guerreiro, ou estava prestes a se tornar um. Ele me forçou a levantar e fazer o mesmo, mas minhas pernas fraquejaram, meu coração rasgava meu peito e minha respiração estava me fazendo ver cores à borda dos meus olhos, o que era impossível, àquela hora da noite.

Acordei perto de uma chama, amarrado a uma árvore na periferia de um grande buraco no chão. Sobre esse buraco estava uma grade, uma grade decorada com pedras e panos coloridos, um desses panos ficava no fundo da grade e era de um vinho vivo. Minha curiosidade ferveu quando o pano se moveu lentamente uma, outra e então outra vez. Olhei com atenção por entre as grades e pedras e panos e vi uma forma triangular e uma forma redonda. A forma triangular se movia mais rapidamente e a redonda seguia, vezes sim, vezes não, mas sempre mais lenta. O que poderia ser aquilo?

Com metade do meu corpo sobre a grade vi um focinho saindo da ponta da forma triangular. Poderia dizer que nos "vimos" simultaneamente, porque aquele focinho acelerou para a borda do buraco com uma velocidade inacreditável na minha direção, com presas brancas enormes, deixando o cobertor vinho para trás e revelando a presença gigantesca de um urso negro.

Devo ter desmaiado de novo. Senti uma dor avassaladora na minha mão esquerda e, ao olhar, vi faixas cobrindo a ausência de um dos dedos, o anelar. À época pensei que eles haviam dado meu dedo ao urso, depois percebi que não foi exatamente isso. Acabou sendo mais fácil conviver com a falta do dedo do que  explicar à minha Lia o sumiço do anel.

Fomos aleitados e cobertos com panos limpos. Eu e o urso. Tomávamos sucos adoçados, preparados especiais, comíamos o que havia de melhor. Depois da terceira noite meu receio de que eles cortariam outra parte do meu corpo foi se desvanecendo. Estava claro que o urso havia arrancado aquele dedo e eu havia desmaiado. A cada dia me convencia de que o urso se irritou ou fascinou com o brilho do anel ou simplesmente eu havia colocado a mão para a frente esquecendo que havia, entre suas presas e garras e eu, uma grade que me protegeria se eu desse um salto para trás. Engordei nesse meio tempo. Bastante.

Aos poucos comecei a compreender a lingua dos familiares de Pé-nú. O urso era uma divindade da montanha e uma espécie de "espírito da lua". Comecei a pensar que aquilo fazia sentido porque o urso desaparece no inverno, quando a lua está mais longe daquelas ilhas no horizonte, e reapareceria na primavera, quando o urso termina de hibernar. O pouco que eu compreendesse ali teria de ser o suficiente ou entendi errado. O fato é que o urso era o espírito ordenador ou divisor. Dividia os quatro momentos do dia, as estações do ano, os elementos. Percebi a relação dele com os elementos quando um xamã desceu, embriagou o animal e fez pequenos experimentos com sopros, pedras, água, madeira, ferro e fogo. A cada um ele respondeu de uma forma, e o xamã pareceu às vezes preocupado e às vezes contente.

Um dia trouxeram uma corda bem grossa. Amarrada em forca. Estavam muito tristes, mas resolutos. Parecia uma tristeza ritual, fingida. Tiraram a grade, embriagaram o animal, ofereceram um banho ritual ao urso que demorou-se em cantos e pétalas de flores. O animal, embriagado, foi amarrado à forca e içado usando-se, para isso, a árvore em que eu estava amarrado. Foi um espetáculo terrível. A dor do peso monumental do animal sendo tensionado pelo seu pescoço parecia trazer rapidamente a consciência de volta, mas não foi o suficiente. Em poucos minutos a energia vigorosa de seus músculos relaxou, para sempre. Todo esse espetáculo me enojou, as comidas que deram ao animal também foram oferecidas, como sempre, a mim, e minha glote já estava se preparando para devolver tudo diretamente ao buraco de onde meu companheiro de cela havia sido dolorosamente içado. Foi quando, num arroubo de sanidade, vi Pé-nú com a mesma expressão ritual de tristeza, caminhando em minha direção, com os braços baixos. Na sua mão direita, uma corda.

O zunido ensurdecedor de mais de trinta arcos simultaneamente vazando o ar ao meu redor jogou meus olhos para o grande urso negro, agora crivado de flechas. Voltei para Pé-nú, de olhar resoluto a menos de três passos de mim. Me levantei. Coloquei os pés na largura dos ombros, virados para frente, estufei o peito, arregalei ao máximo meus olhos, peguei minha coxa com a mão esquerda e, jogando o cotovelo direito para fora do corpo, bati com a mão direita fechada no meu peito, por duas vezes. Foi o que vi Pé-nú fazer no galho, foi o que me veio à mente. Foi o que me salvou a vida.

Antes que eu fosse embora eles me presentearam com um dente do urso. O mesmo tipo de dente que eles colocavam, afetuosamente, sobre os berços das crianças, como as patas e garras que colocaram sobre as portas das casas, rezando em minha despedida, para que a força vital do urso pudesse retornar dando a eles mais força e astúcia, para que o "espírito do velho", do "avô da floresta", retornasse para conviver com eles e os alimentar de força e sabedoria. Para que ele não praticasse a possessão, mas se prestasse a ser parte da magia e da vida daquele povo.

Ao ir embora tentei explicar para Pé-nú que seu povo estava morrendo, que era preciso ir a novas ilhas, que o progresso estava chegando e os destruiria. Afinal, que suas crenças não faziam o menor sentido! Ao que ele me respondeu algo como: "Estamos morrendo sim, você tem razão. O avô do avô do meu avô costumava caçar sete ursos por vez e esse ano só tivemos um. Então nosso povo está fraco. Quando tivermos mais ursos então. Aí talvez o seu povo fuja de nós."

Conto e Receita: Renato Kress

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