quinta-feira, 17 de maio de 2012

Os dias que aconteceram na última hora...


Foi um estouro da memória que transbordou arregaçando as idéias e sensações e percepções e tudo aquilo era tão antigo e ao mesmo tempo vivo como uma explosão do dique afetivo em que ele se enclausurara há anos. Mais anos do que ele se permitira admitir. Mas admitir ou não era ridículo porque era um processo íntimo, diferente das artes expressionistas com que ele pincelava a própria vida íntima para os amigos e parentes. Não havia o que admitir ou não. Admitir a quem? A uma parte íntima de si mesmo? Ele sabia e isso bastava.


Foi tropeçando numa escada. No intervalo entre o copo na boca e o queixo no degrau. Naquele intervalo o corpo deu um passo de astronauta e flutuou livre, mas a quantidade excessiva de ar que o susto levou para dentro dos pulmões fraturou as fundações da barragem interna que ele nem mesmo se lembrava de haver erguido. Quebrou o alicerce do dia em que ele desaprendeu a amar. E foi tudo muito claro naquele tropeço: Lívia, olhos de sol, opressão, cheiros e muito choro. Tudo veio como um mergulho num caldeirão fervilhante de memórias.

A primeira memória longa correu seu corpo junto com o sangue no seu queixo. Era o nome dela, "Lívia" e a escada de degraus brancos. Lembrou daquele dia em que ele saiu correndo, desesperado, sem conseguir olhar para trás, olhar para ela... e um gosto de sangue.

Vamos tentar organizar as memórias dele para o leitor. Heitor é um homem sério. Advogado, 31 anos, extrovertido, senhor de si, cercado de amigos, amigas... especiais (digamos assim) e conquistas. Tem seu apartamento, sua moto e seu carro. Estaciona na primeira vaga que encontra quando chega no prédio, mesmo que as vagas sejam marcadas, e sempre resolve o embaraço no dia seguinte com um abraço forte e um sorriso franco e aberto para o legítimo dono da vaga. Compra todos pela simpatia, e é um cara de pau de marca maior.

O fato aqui é que Heitor caiu na escada. Numa escada estreita de uma casa noturna na Lapa, numa despretensiosa quinta feira comemorando o fim das aulas de improviso que havia feito nos últimos seis meses. Estava alcoolizado, a escada era estreita e longa, talvez alguém o tivesse empurrado, mas ele não se lembrava muito bem de haver visto a tal escada. Mas não pôde mesmo esquecer a impressão do tropeço e o ar estourando alguma coisa por dentro. Não era um estouro orgânico, mas afetivo. Ele soube que estourou quando lembrou dos degraus brancos da casa de Lívia, sua primeira namoradinha.

Aos quatorze anos Heitor conheceu Lívia, a única impressão que ele guardou de lá para cá, a mais forte, foi que os olhos azuis dela eram irritantemente brilhantes, como olhar para o sol. Ele tinha que mantê-la sorrindo porque assim ela contraía as pálpebras e ele conseguia olhar para ela. E Lívia amava ele, porque ele a fazia rir e ele amava ela, porque ela era linda. O que desabrochou dentro do coração dele fez com que horas e dias e semanas se dedicassem a fazê-la rir e os estudos se atrasaram, amigos, família e rua, tudo o mais definhou e sumiu e ele já não era ele e não se reconhecia ao se dedicar a ela. Toda essa entrega absoluta e intensa foi tragando tudo o que ele era e sentia em direção ao sol dos olhos dela. Uma gravidade absurda o jogava em translações diárias ao redor dela.

Até que ela pegou conjuntivite. Dois dias em casa. Ele foi ao colégio, ela não estava. O primeiro dia foi como ficar embaixo d´água sem conseguir emergir. Ela era a superfície, o oxigênio, a vida. Tudo o mais parecia lento, aquoso, recheado de uma pressão enervante e muito, extremamente cinza. O segundo dia foi mais sereno. Ele chegou cedo e pôde ouvir os pássaros em algum lugar ao redor do velho prédio ou no pátio do colégio. As cores eram pálidas e ele ouviu chamarem pelo nome dele, algumas vezes. No terceiro dia as árvores tinham um verde intenso e ele estava conversando no centro de uma roda de amigos quando viu a certeza no amor tragada ao encontrar com ela no pátio. Ela tinha o mesmo brilho de sempre - exceto por um certo vermelho ao redor dos olhos que bem poderia ser o fim da conjuntivite como um resquício das lágrimas de ontem - mas ela brilhava como o universo todo e não mais nem menos.

Naquele dia o pai dele o deixou na casa dela e viria pegá-lo em duas horas. Heitor sentou-se na escada com Lívia e viu o mundo. Para ele estava claro que ela o deixava doente, que sugar todas as cores do mundo para dentro dos olhos dela era uma espécie de bruxaria que ela sabia fazer. Talvez aprendesse com a mãe, elas tinham os mesmos olhos. Ele teve medo, medo de olhar de novo para os olhos dela. Nesse medo lhe faltou a piada pronta, o riso descarado e ele encarou o sol dela com os olhos nus. Ela estava atenta e tensa, com as safiras arregaladas para ele. Ele se assustou com aquele sacrilégio azul, levantou, tropeçou e largou o amor ali. Nas escadas brancas.

Conto por: Renato Kress

2 comentários:

  1. ... internamente, Lívia sentia-se acuada e estranhamente vazia à medida que percebia, seu único e verdadeiro reflexo distanciar-se. Não havia mandinga ou doçura azulada que trouxesse de volta o amor por si mesma.

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  2. "Foi um estouro da memória que transbordou arregaçando as idéias e sensações e percepções e tudo aquilo era tão antigo e ao mesmo tempo vivo como uma explosão do dique afetivo em que ele se enclausurara há anos."

    Fantástico...
    Foi o que pensei logo após ler a ultima palavra do conto.
    Você é muito talentoso.

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