quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Cidade Proibida

"No man is an Island,
entire of itself;
every man is a piece of
the continent, a part of the main”
- John Donne


Era uma cor que se plasmava na mente dele. Ali, na casa de tintas, ele olhava a cor que queria para a sua parede. E era novo ter uma parede, como era novo ter um teto e chão. Ele estava ali, absorto, ampliando como um longo mural uma por uma das cores que apareciam na paleta entre seus dedos. Seus ouvidos ignoravam a moda da cor tal ou qual que saía em cachoeira de palavras da boca tensa do vendedor. Na sua mente mil paredes se expandiam e estampavam em verde limão, vinho oriental, laranja cítrico, azul petróleo. Cada uma era um espectro de humores sob os quais ele passaria muitos anos de sua vida, e era importante que essas cores significassem para ele. Como escolher uma cor para toda a vida? Como escolher um humor para toda a vida?

Quando mais novo pensava sobre as vantagens da temperatura do sangue. Um sangue frio impunha maior autocontrole, vingança, palavras monotônicas, volumes cadenciados, afetos controlados por um relógio de corda, sangue quente vazava pelos atos, esbarrava pelas mesas, tropeçava garras pelos pescoços alheios, ampliava o espectro vocal, inflava o peito. Cada qual representava um caráter que era necessário escolher para representar até ser, pelo resto dos dias. E agora, sangue escolhido, que ritmo cardíaco queria naquela parede?

A sala era um quarto de um conjugado dividido pelo sofá-cama de costas para a janela. Um conjugado com duas paredes contíguas. Um lado era recheado de portas embutidas de armários, uma das quais era a porta do banheiro, o outro era simplesmente a parede. Os outros lados paralelos do quadrado eram a janela e a porta da casa que dividia espaço com a cozinha americana e a entrada para uma área de serviço. Claramente só havia uma parede e ele estava decidido a não tê-la branca ou verde hospital (não havia boas lembranças de hospitais). Foi o que o levou à casa de tintas e agora o levava ao vermelho "cidade proibida", inspirado nas cores da famosa cidadela chinesa.

Aquela parede o acompanhou pelos três anos em que morou naquele primeiro conjugado. Alguns meses foram o suficiente para que ele comprasse um adesivo de parede marfim com o símbolo chinês da longa vida e colocasse bem ao centro, dividindo o semi-quarto da semi-sala. Ele nunca percebeu claramente - colocava a culpa no tempo, na hora, nas circunstâncias -, mas a proibição da cidadela chinesa lançou-lhe um feitiço peculiar: visitava todos os amigos, era comum em festas e churrascos, foi a inúmeros cinemas e motéis, mas nunca recebeu visita.

No fim do terceiro ano voltou à casa de tintas. Recebera um novo cargo na empresa com o qual pagou a primeira prestação do seu novo apartamento, agora com uma nova parede entre o quarto e a sala. Aquela parede areia, que ficou com uma marca do café que derrubaram no open-house. Nenhuma parede foi para sempre.

Conto e receita: Renato Kress

Um comentário:

  1. Marcas são desenhos feitos em nossas vidas, que ficam para sempre! Não importa se é uma mancha na pele, um recado na beira de um livro, uma mancha de café em uma blusa.... Essas marcas tem a missão de relembrar momentos bons ou ruins que aconteceram em nossas vidas. Como uma lembrança boa, ou um aprendizado eterno, não devemos apagar tais marcas, pois todo caminho precisa de referências, para guiar nossos passos por onde passamos e por onde iremos passar. Belo conto como sempre meu anjo. Parabéns pelo novo blog! Continue com essa inspiração e dom divino, q tanto alegra corações e me faz viajar em suas palavras.

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