segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Aquele beijo

Foi numa festa. Na verdade no fim de uma festa. Éramos amigos, e ele sempre contava muitas histórias. Fomos para longe das luzes e das vozes. Ele sentou do meu lado, olhou meus olhos e apontou as estrelas. Era sempre assim que começavam as histórias. Pelo menos as dele. À medida que os dedos dele passeavam de constelação em constelação eu ouvia um solo intenso de piano que tocava na minha alma (ou longe? na festa?) enquanto meus olhos, bem abertos, projetavam meu corpo em vôos alucinantes por entre as árvores para depois se perder naquelas estrelas. Era assim que começavam as histórias dele. Era assim que eu me preparava para ouvir.

- "Fecha os olhos e solta a voz no mundo. O corpo retorna pra lá quando tem de retornar. Não antes. Você foge muito, menina. Sabe? Alguns heróis, quando morrem, viram estrela. Talvez alguns de nós, depois de muitas mortes, morremos estrela, mas nunca antes. Para viver - não é respirar e andar ou atrasar nosso enterro enterrando cada dia numa massa cinza inferior à gente mesmo, digo para viver vivido, para tocar a alma do mundo com o caminho dos pés - aí é preciso vários momentos de bem morrer. Mas olha, por favor, não morra antes de morrer."

Ele tocou minha cabeça duas vezes, com força, e sorriu.

- "A gente se engana muito, sabia? Aqui você desaprende. Aí que a coisa toda desanda. Um pouco de tempo e as teias traçadas aí em cima viram a raiz dos piores cogumelos. Você ri? Eles implodem! Com o tempo isso vira um campo minado e aí te convence a parar de acreditar. Primeiro em uma pessoa, depois várias, logo muitas e, por fim, você desacredita de você. É desacreditando que você deixa de morrer e, enfim, morre. Parece que não, mas vai que tem algum sentido, escuta. Quando você desacredita bem desacreditado mesmo no presente ou no futuro é que você não deixa o passado morrer direito, aí, com um pouco mais de tempo, a sua semente morre semente e nunca flor nem fruto. Isso aí, se dominar, vai querer te dar certeza e chão e terra. Mas olha o mundo. Acha que o mundo precisa de mais terra e pedra? E se precisar, não vai ser de você. Você é o que você está se tornando, sempre. Vida vem com a terra, mas é mais que isso, é vento e água e fogo e nunca só um. É, eu bebi... Com o tempo, com um pouco de mente e tempo, você desacreditará no controle do teu pensamento, a palavra que te sai não vai dar medo no mundo para criar o novo, e aí, quando tua palavra perder a magia, quando a voz da sua voz morrer antes do som, a mão vai perder deus e o ato vai brotar mecânico, óbvio, sem dança. E é preciso dançar o futuro, sabe? Como num salão bem cheio, tipo aquele que a gente evita, lá atrás. No salão, na dança, você prevê o movimento, o que você quer do movimento, mas aí tem o salão e os outros dançando e as luzes e a bebida escorrida no chão e a batida do momento. É a batida que dá o ritmo, e a coisa toda é feita de ritmos, sempre. E aí em cima não bate."

Ao longe a gente ouvia "Walk on the wild side". Ele tocou meu peito e colocou a boca no meu ouvido.

- "Bate aqui."

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