segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A banheira de Agamêmnon

A televisão, alta, podia ser ouvida de dentro do banheiro onde ela tomava uma longa e morna ducha. Queria que seu coração desacelerasse, mas mesmo por baixo da água quente e que descia pelas suas costas e cabelo, as pupilas pareciam latejar, as mãos tremiam e uma sensação deliciosa de poder e potência parecia dançar sobre a superfície da pele de Luzia. Os sons ainda ecoavam pela sua cabeça, todos eles.

A televisão não parava: "Um dos mais violentos crimes já presenciados na cidade! Desfigurado e decapitado, por uma pá de pedreiro, o corpo e a cabeça do senhor Manoel Constant foram encontrados em duas lixeiras diferentes na saída dos fundos de uma boate..."

A cabeça de Luzia escorregava pela banheira, mergulhando suas costas trêmulas e nuca sob as águas mornas, na esperança de controlar a respiração curta e acelerada, ritmada pelo coração e as pupilas dilatadas. Ainda submersa sentia o som e a vibração do ferro e a textura da madeira sobre seus dedos leves e gelados. Os sons ecoavam pela sua cabeça. A cada vez que emergia a cabeça daquele lodaçal e frenesi de si mesma, abria bem olhos e ouvidos. Pedia para ouvir mais que a televisão, queria ouvir alguém na porta, arrombando, esmurrando, apontando armas e dedos para ela.

Mas era só a repórter, com mais detalhes. Todos inúteis: "Na pá ajuntadeira quadrada número quatro da marca momfort não foram encontradas impressões digitais, apenas as marcas do sangue da vítima que espirrou na parede e no chão do beco na entrada lateral da cozinha da boate. Ao que parece não houve nenhuma testemunha e a música deve ter abafado os possíveis sons..." Agora era só manter o drama e mostrar novas imagens por trinta minutos para alavancar o ibope e vender horário comercial.

Luzia olhou para a tampa da privada, as duas luvas de couro e látex estavam ali, como se sorrindo. Ela ainda não conseguia parar de tremer. Mesmo sentada na banheira não conseguia firmar os pés e achava que ia desmaiar. Girou a torneira enquanto a chuveirada se tornava um filete de água delgado que ela deixou escorrer pelo meio dos seus cabelos até a testa, descendo pelo nariz para ter seu mergulho interrompido pela língua de Luzia, que num bote, tragou aquele último vestígio de sentimento. Seus olhos arregalaram para imediatamente cerrar, enquanto suas pupilas voltavam ao normal. Um último calafrio percorreu seus ombros e desceu pela sua espinha até seus pés, que imediatamente pararam de tremer. Ela se vestiu, se perfumou e esperou. As luvas não sorririam para sempre. Eles chegariam a qualquer momento.

A televisão nunca disse que "Manoel" Constant, a "pobre vítima de um ataque de fúria assassina, que deformou a lateral esquerda de sua face e o decapitou a golpes de uma pá ajuntadeira quadrada número quatro", o "pai de família e sóbrio homem de negócios haitiano", o "gentil pai e amigo" pelas palavras de seus vizinhos entrevistados, era um refugiado. Menos ainda mencionaram ser ele um tipo específico de refugiado. Alocado no "Queens" com ajuda do governo norte-americano, Mr.Constant degustava sua merecida aposentadoria como chefe da força paramilitar haitiana FRAPH através da qual ele foi responsável direta e indiretamente pelo assassinato de quatro ou cinco mil haitianos, no início da década de 1990. Dois desses haitianos ainda sorriam, em preto e branco e sépia, com os rostos colados num emaranhado de 3x4, na carteira de Luzia.

Receita e conto: Renato Kress

Um comentário:

  1. Prendi a respiração enquanto lia o conto. É muito real! Parabéns Kress...

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