segunda-feira, 16 de abril de 2012

Serial

Então ela resolveu abrir a carta, aquela carta amassada e amarelada que seu amigo havia escrito antes de viajar para escalar o Kilimanjaro. Eles nunca mais se viram. Naquele tempo, em Santa Teresa, ela estava mais preocupada em aprender a tocar violão e a saber o nome do menino que morava no condomínio que tinha um bondinho dentro. Ela recebeu a carta com desdém, quando o professor de violão viajou. Depois, não teve coragem de abrir. Até encontrá-la na mudança de hoje.

Ela pôde reconhecer a tipografia das antigas máquinas de escrever, ainda borrada sobre um papel amarelado.

"Bom dia!
Estou te escrevendo porque passo. Hoje vou a novos lugares e estarei onde não estiveres, estarei à sua frente todo o tempo e, paradoxalmente, só andarei pelo caminho que você construir. Viverei recheado de sonhos e expectativas e desejos, mas só me moverei pelos teus atos, gravados na pedra talhada de cada segundo da tua existência. Passarei, como todos passarão, mas ainda que eu passe, estarei sempre e ainda, adiante. Posso te olhar como o próprio demônio ameaça entre dentes trincados, posso te acenar como uma virgem donzela completamente lânguida, entregue, à espera da tua espada salvadora, posso e devo e vou te surpreender, sempre.

O meu tempo é o teu tempo. Nem mais nem menos. Embora você insista em me empurrar pra frente, nunca estarei a mais de um passo de você, nunca passarei um terreno que você não tenha preparado para mim. E ainda assim estou livre, terra nova, para que plantes no meu seio as frutas cujo sumo deseja e vou te dar mais e menos do que plantou, sempre. Posso ser arenoso, aguado, seco ou ordinário, posso ser aéreo ou ígneo, posso ser muitas coisas mas serei apenas o que tuas mãos cavarem para fora de mim mesmo, como uma escultura presa num bloco de mármore cru.

Eu vou desviar você do seu caminho quando menos esperar e na curva do desvio você aprenderá um novo rumo. Por mais que você me segure firme às rédeas vou relinchar e chacoalhar e empinar e é claro que invariavelmente eu te jogarei para fora da sela. E talvez na queda, se você tiver olhos, no chão de terra batida você vai tropeçar em um trilho e o que era uma cavalgada livre e penosa pode tornar-se uma prazerosa via expressa por algum tempo. O problema das vias expressas é que elas só levam onde outros já estiveram. Nada mal, quando é o que se quer. Eu posso ser essa via expressa ou essa trilha aberta a galopes da potência controlada. Eu vou torcer você, mudar você, caçoar das tuas certezas apenas para testar o quão profundas são as tuas raízes. E se elas forem rasas, não tenha dúvidas, eu vou derrubar você, sempre. Mas não se preocupe demais, ninguém jamais saiu vivo deste jogo.

Eu estou aqui para gargalhar na sua cara e, talvez, se voce tiver sorte ou espirito, ainda gargalhe de volta e, neste dia, quiçá, você me abrace e se no meu ouvido sussurrar pelo meu nome te direi:

Prazer, Destino."

Abaixo, numa letra corrida que ela não pôde reconhecer:

"Por favor leia, feche e entregue a alguém importante."

Conto e receita: Renato Kress

4 comentários:

  1. "Eu vou torcer você, mudar você, caçoar das tuas certezas apenas para testar o quão profundas são tuas raízes."... E assim, seguimos, como peças em tabuleiro de xadrez. Perfeito!

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    1. Esquece de me marcar na sua crônica, mas, malandra que é, vem logo aqui e deixa um comentário para se redimir! Gosto mesmo é de gente assim, rápida no psicogatilho virtual. :) Gosto quando me lê.

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  2. Reencontrar seu talento é sempre bom...

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  3. Adorei como sempre!
    Muito empolgada lendo, pensei: que loucura, que perseguição, seria uma pessoa?!

    Mas tão gostosa leitura e que interagindo aqui, dei meus sorissos entre dentes... E para o destino curto mesmos as gargalhas que devolvemos, mesmo que sejam após alguns soluços e lágrimas. A aprendizagem.

    "[...]nunca passarei um terreno que você não tenha preparado para mim." ~ Gostei da alfinetada... só pra salientar que geralmente as nossas escolhas não geram só as alegrias mas também as torções e as reviravoltas da vida.

    "Eu vou torcer você, mudar você, caçoar das tuas certezas apenas para testar o quão profundas são as tuas raízes."

    ~ Adorei tudo. O bom emprego das palavras tbm nos move. ^^

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