segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O Duplo

Seria bom poder ser objetiva. Ter foco, uma visão recortada e centrada da realidade. Perceber um pouco de nitidez num universo que me parece tão mutável quanto turvo. Gosto quando recorto a realidade porque me parece que exerço uma leitura específica sobre o mundo, minha leitura. É um exercício de poder, nunca neguei. Talvez por isso mesmo eu tenha decidido ser fotógrafa.

Quando falamos pelo telefone, eu e ela, algo ímpar transformou aquela quinta-feira. Algo no tom despreocupado ou no sotaque carregado daquela menina francesa me inspirou uma oitava acima da vida cotidiana. Fiquei inquieta e apressada, algo na atmosfera simplesmente mudou e não saber exatamente o quê realmente me inquietou. Demais.

Da minha experiência desse trabalho, só o que posso te dizer é que foi a coisa mais bizarra que já presenciei. A garota é francesa e meu pai nunca esteve na frança, então, a princípio, risco zero. Claro que a mãe dela poderia ter vindo para o Brasil, mas... risco zero, por favor! Devo estar ficando louca! Além do mais ela tem idade pra ser minha filha e ela é literalmente a minha fuça! Fosse só isso, ótimo, mas todos os presentes se impressionaram: a postura, o jeito de falar, de andar, a aparência... Ouvi comentários suficientes da equipe e não quis dizer nada mais, mas ela tinha o jeito de vestir de quando eu tinha a idade dela!

A sensação que tive foi a de me ver no espelho vinte anos mais jovem mas com o olhar vinte anos mais treinado que tenho hoje. Muito estranha a sensação. Enquanto não coloquei a mão nela, não me convenci de que não era um holograma! Viagem no tempo total, só que estando presente, por trás da lente!

Conversamos sim, mas como ela não viveu o que eu vivi até aqui, creio que não tenha tido o mesmo impacto, embora tenha flagrado o olhar dela meio perdido em mim algumas vezes. Talvez alguma projeção, não sei. Muito, extremamente estranho. O jeito de falar é igual, não a entonação, não tenho sotaque, mas as pausas, o movimento dos olhos e a brincadeira com os lábios, ela morde quando não tem certeza do que vai dizer. Sei que faço isso. Mas definitivamente é outra experiência de vida. Os assuntos, as abordagens, a profundidade, isso tudo é diferente de quando eu tinha a idade dela. Eu era mais nervosa com a vida, mais insatisfeita, mais afoita, menos tranquila do que ela. Eu tinha a incerteza de um caminho, o que me pareceu que ela não tem.

É. Talvez você tenha razão e ela esteja carregada dessa certeza juvenil que o Renato Russo fala, mas não sinto que seja só isso. Ela me pareceu mais pacífica, mais serena, até mais velha, no olhar. Isso me assustou mais do que tudo. Suei a ponto de reclamar do calor dentro do estúdio com ar ligado e tremi de frio quando fotografamos ao ar livre. Eram trinta e oito graus no termômetro da rua.

Sim. Definitivamente sim. Era inevitável que ela percebesse nossa sinonímia. Não reagiu com nenhuma surpresa ao nos encontrarmos, mas com certa curiosidade, sim. Nem melhor, nem pior. Parecia me analisar, mas não entrei por essa senda. Para mim foi o me ver e não me reconhecer em fração de segundos.

Uma coisa engraçada é que eu colo no modelo o tempo todo. Se vai ao banheiro vou atrás, se sai, saio também e assim vai. Uma hora, na make, eu a fotografava pelo espelho e tive a nítida sensação de auto-retrato!

Uma das fotos que tirei dela foi sobre a murada da Urca, com um vestido vermelho, cabeça entre os joelhos, olhando o mar. Tenho muitas fotos minhas em casa, muitas, óbvio. Impossível lembrar todas. Essa, da mureta da Urca, vestido vermelho, cabeça entre os joelhos, exatamente essa, minha mãe me colocou nas mãos assim que cheguei em casa, havia caído e trincado o vidro.

Conto e Receita: Renato Kress

5 comentários:

  1. Renato, muito bom o texto, bem fluido e rico em imagens e pensares, como deve ser uma boa prosa! (jiddu)

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  2. Deve ser uma experiência e tanto viver algo assim...fantástico...Beijo no moço lindo!

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  3. Reencontro consigo mesmo... faz e não faz sentido... muito bom o texto e interessante, a vida pode nos pregar todo tipo de peças né?
    Bjs Primus!!!!!

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  4. Que gostoso comentário da prima linda de Fortaleza! Saudades Nath! Vem pro Rio vem!

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  5. Belo texto Kress... Tardei passar por aqui... Óbvias razões de impacto... Estrondos já suficientes em peito que esteve em França e voltou apertado. Tua expressão tem moldura aqui... Como o olhar claro e alheio por trás da lente... Mecanismo que nos permite ver o mundo como ninguém mais... Em lábios mordidos... Em olhares que gritam mais que gargantas... Em auto retratos... Out of the box... Bj.

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