segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Elenco de apoio

- Essas noites sem lua me perturbam.
A frase cortou o ar pesado do verão como uma katana divide em dois um bambu entre aqueles trinta e poucos centímetros que separavam, na varanda da festa de Rodrigo, Eleonora e Jânio. Os olhos dele percorreram os céus negros como se fosse possível, ao encontrar a lua, pedir aos lábios dela um sorriso como resgate. Nada.

- Dizem que a lua tem algo com sentimentos. O que você acha?
A segunda frase dela veio ainda com os olhos perdidos no infinito constelado, sem mover os olhos ou qualquer parte do corpo em qualquer direção. Os pulmões de Jânio estavam num impasse: o ar entrava prenunciando a sílaba que deveria sair e se retardava submersa em meias palavras que não se completavam e embaralhavam na língua inquieta e morta. Ela era linda demais...

- Linda...
- Como?
- Awn... 
- Você disse "linda".
Os olhos dele fugiram dos dela e procuraram em qualquer estrela a palavra certa, a idéia certa. Cerrou os punhos pesadamente somente para rezar para si mesmo que ela não tivesse percebido que sua nuca estava suando. A palavra, a idéia...
- Linda, a noite está linda mesmo sem lua. Não acha?

Os quadris de Eleonora quedaram-se para a beirada da varanda e levaram seus olhos negros a se perder novamente no véu da abóbada celeste. Se ele estivesse frente a frente com ela poderia jurar que um sorriso resignado lhe serpenteou os lábios antes da boca se abrir.
- Uma noite sem lua é como uma lista telefônica.
- Como é?
- Uma lista telefônica, sabe? Muitos personagens, nenhum protagonista.

- Entendo. E é preciso que haja um protagonista? Para a noite?
Seus ombros relaxaram quase trezentos quilos cada um por haver acreditado que finalmente ele estava acertando as palavras, essa espécie de leprechauns brincalhões que sempre lhe desapareciam quando mais precisava. Palavras em fuga eram constantes em Jânio, assim como a apreensão que o invadia nessas situações. Algumas vezes sentia como se estivesse efetivamente esmagando o próprio crânio em busca do termo certo, o que fazia com que raramente ele saísse no tempo certo, mas isso já é outra questão.

- A vida deve ter um protagonista, não?
- Cada qual o seu, creio que sim, mas...
- Então a noite também deve ter seu protagonista.
Ele queria pedir a ela que brilhasse no lugar da lua, que simplesmente sorrisse e estaria feita a luz necessária para iluminar a noite dele. Tudo isso parecia igualmente lindo como brega para Jânio, que sentiu repentinamente sua boca se avolumar como um tsunami de leprechauns brincalhões, impedindo as palavras de se formarem e virem à luz.

Jânio pigarreou bem alto, como se quisesse que todos aqueles malditos anões bucais entendessem quem é que mandava ali. Pigarreou de novo - o que soou meio estranho e seco, mas já era tarde para consertar e inspirou profundamente antes de partir para o tudo ou nada:
- Está com calor?
- Sim, mas...
- O sol cansa. O calor cansa. O excesso da presença do sol, essa presença que se esgueira em vapor quente subindo do asfalto até altas horas da noite, cansam. Minha pele está quente, a tua também deve estar. Estou na varanda esperando uma brisa que não acontece, ou quando acontece vem quente. O protagonismo excessivo cansa. O sol anda muito expansivo ultimamente. Talvez por isso a lua tenha se retraído. Vai saber.

Eleonora sorriu e sua cintura torneou-se levemente para a esquerda, lado onde a pulsação de Jânio provocava um terremoto arterial e fazia suas mãos começarem a suar. As esferas negras por trás das pálpebras dela desceram até a portaria do prédio, enquanto seu umbigo formava um ângulo de cento e oitenta graus com o umbigo de Jânio...
- Vamos descer para procurar a lua?

Conto e receita: Renato Kress

2 comentários:

  1. Mas uma vez surpreendida e apaixonada pelas suas palavras e analogias!
    Um conto simples e avassalador!
    Parabens [novamente
    senhor autor!

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  2. Simples e lindo, assim como o autor...Beijo no moço lindo!

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