segunda-feira, 4 de abril de 2011

SAC*

Pernas atoladas numa piscina sem fim de vermelhos aparelhos telefônicos, tocando simultaneamente, todos, quentes, flamejando seus tornozelos e joelhos, ensurdecendo sua alma. A cintura e o tronco para fora do mar vermelho suportavam o vento congelante num sussurro inquietante. "Alô?", "aguarde um minuto por favor", "estamos transferindo sua ligação para o setor responsável", "não há nada que eu possa fazer, senhor, mais alguma coisa?", "aguarde por gentileza" e mil orquestras tocando simultaneamente músicas lentíssimas enquanto suas mãos percorriam os aparelhos tentando encontrar um equilíbrio entre queimar e congelar. A carne, ardendo em frio, quebrava partes e soltava cacos sobre os telefones vermelhos. O fedor da própria carne queimada trazido pelo vento frio a suas narinas lhe fazia vomitar e eram cabos que lhe escorriam pela boca, congelados e ardentes, simultaneamente.

Fez-se então silêncio naquela paisagem desesperadora e Antônia pôde ouvir um telefone tocando. Eram suas preces sendo ouvidas, com certeza. Mergulhou avidamente, quebrando e trincando partes congeladas de suas costas e rosto atrás do toque do telefone. A dor era tamanha que ela pensou que iria desmaiar, mas não, tinha que atender àquele telefone que parecia cada vez mais perto. Ferveu os músculos das mãos sem pele e liquefez suas orelhas tendando em vão atender aquelas brasas vermelhas. Por o que pensou que fossem horas e horas e o toque do telefone cada vez mais ensurdecedor, as brasas tocando partes dos ossos das articulações dos seus pés quando levantou um aparelho e o toque parou.

- A-Alô!
Do outro lado da linha uma voz suave, delicada, quase angelical disse polida e muito pausadamente:
- Aguarde por favor, um de nossos atendentes irá entrar em contato em breve.

Sua garganta parecia formar pequenas crostas de gelo por dentro e ela não teria forças para dizer palavra alguma quando sentiu que o vento cortante lhe encheu a boca de restos flamejantes de pós de telefones queimados. Vomitou uma tosse qualquer que lhe ardia a espinha.

- Alô!
A voz no telefone era elegante, macia. O som do vento lhe fez grudar o telefone fervente na lateral do rosto, já sem orelha.
- ALÔ! PELO AMOR DE DEUS, PELO AMOR DE DEUS, O QUE ESTÁ ACONTECENDO? ME AJUDA!! ME AJUDA, ME AJUDA!!!
A voz parecia ainda mais doce e delicada e respondeu tranquilamente:
- Com quem a senhora gostaria de falar, por favor?
- ME TIRA DAQUI!!!! PELO AMOR DE DEUS, ME TIRA DAQUI!!! ME TIRA....
E lágrimas começaram a percorrer o rosto de Antônia na forma de pequenos cristais que laceravam suas bochechas congeladas à medida que rolavam entre soluços arenosos congelados.
- EU NÃO AGUENTO MAIS!!!! PELO AMOR DE DEUS ME TIRA DAQUI!!!!
E o gosto de sangue se misturava ao frio insuportável nas paredes de sua boca. E partes do telefone já esfumaçavam partes dos ossos de sua mão quando ela ouviu a voz ao outro lado, lenta, calculada:
- Por favor, fale pausadamente. O que a senhora deseja?

- DEUS!!!!
- No momento Deus está ocupado. A senhora gostaria de pegar uma senha e aguardar ou prefere outro de nossos atendentes?

- O QUÊ É ISSO? PELO AMOR DE DEUS PARA COM ISSO!!!!! ME TIRA DAQUI!!!!
- Entendi. A senha para falar com Deus é 4563402948593920495830-3945123124523. A senhora gostaria de anotar o protocolo dessa ligação?
- AHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!!! NÃO NÃO NÃO NÃO!!!!!
- Por favor, fale pausadamente. A senhora gostaria de cancelar seu requerimento?
- ME TIRA DAQUI!!! PELO AMOR DE DEUS!!!!! ME TIRA ME TIRA!!!! AHHHHHHHHHHH!!!
- Aguarde um instante, estamos cancelando seu requerimento. - Entra Berceuse de Brams.

Antônia já havia perdido os pés e tornozelos quando a voz voltou. Dois dedos de sua mão esquerda haviam quebrado, caído e começavam a chamuscar em pequenas faíscas.

- Por gentileza, a senhora gostaria de falar com quem?
- CRISTO!!!! CRISTO!!!!
- Entendi: Krishna, Aguarde por favor.

Antônia largou o telefone sobre as brasas e começou a rezar mordendo sua própria carne congelada. Foi quando ouviu a voz do telefone por toda parte, como se viesse de todos os telefones simultaneamente:
- Por favor, não deslige. A sua salvação é muito importante para nós!

Perdeu mais um dedo tateando todos os aparelhos até descobrir um em que pudesse ouvir a voz suave, melíflua:
- O tempo de espera para falar com Krishna é de aproximadamente sete anos. A senhora gostaria de pegar a senha?

- EU NÃO MEREÇO ISSO!!!! DEUS DEUS DEUS!!!!
- Olá. Para nossos registros internos gostaríamos de saber o que a senhora fazia antes de estar aqui. Lembre-se de falar pausadamente.
- ME TIRA DAQUI!!!! ME TIRA DAQUI!!!!! ME TIRA DAQUIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII!!!!!!
- Desculpe-me, sem essa informação não podemos prosseguir. A senhora poderia dizer qual a atividade exerce profissionalmente?
- TELEMARKETING!!! EU TRABALHO COM TELEMARKETING!!! PELO AMOR DE DEUS ME AJUDAAAAAAAAAAAA!!!!
- Ah, telemarketing? Aguarde, sua perdição é muito importante para nós.
- COMO? PERDIÇÃO?
- Oh, perdão! "Salvação", a sua "salvação" é que é importante para nós!

Foi quando seu pulso, frágil, quebrou misturando o telefone a todos os demais, vermelhos, flamejantes...
- MAS QUE DIABOS!!!!

- Pois não?

Conto e Receita: Renato Kress

* Serviço de Atendimento do Capeta

4 comentários:

  1. Já me senti assim, várias vezes...
    Adorei, você conseguiu retratar o nosso desespero!

    ResponderExcluir
  2. Adorei! É imprecionante como o caminho até o "céu" é mais distante. Enquanto os "diabos" da vida parecem sempre apostos. Muito bom! Parabéns!

    ResponderExcluir
  3. Muito bom querido...e a gente vai ficando assim msm...dá vontade de desistir,xingar e por aí vai...Bj no moço lindo!

    ResponderExcluir

Postagens populares